sábado, 11 de abril de 2020

Míriam Leitão - Os 30 dias que abalaram o Brasil

- O Globo

No dia em que o Brasil atravessou a linha de mil mortos por Covid-19, o presidente exibiu a mesma atitude irresponsável que tem tido desde o começo da crise

Quando o Brasil atravessou ontem a fronteira dos mil mortos por Covid-19 o presidente Jair Bolsonaro saiu para passear novamente. Foi a uma padaria, a uma farmácia, passou pelo Hospital das Forças Armadas onde, disse aos jornalistas, foi fazer teste de gravidez. Ele é coerente. Tem tratado a pandemia com a displicência de sempre. Seus atos e palavras nos últimos trinta dias mostram a constância da mensagem contra o isolamento social e as recomendações das autoridades de saúde.

No dia 10 de março, na viagem aos Estados Unidos, para uma plateia de empresários, Bolsonaro disse “a questão do coronavírus não é isso tudo isso que a grande mídia propaga” e que muito era “fantasia”. Na volta descobriu-se que na comitiva havia 23 infectados. No domingo, dia 15, ele foi à manifestação contra o Congresso e o Supremo, cumprimentou inúmeros manifestantes, desprezando os cuidados para prevenir o contágio. O comportamento mostrava desprezo às orientações médicas, e o ato era um desprezo à democracia. Ele compartilhou vídeos de manifestantes de várias partes do Brasil exibindo faixas que não deixavam dúvidas sobre a natureza antidemocrática das mensagens.

No dia 17 houve a primeira morte confirmada por coronavírus, Rio de Janeiro e São Paulo decretaram emergência. E ele: “A economia estava indo bem, mas esse vírus trouxe alguma histeria. Existem alguns governadores que estão tomando medidas que vão prejudicar nossa economia”. No dia seguinte, ele disse que não haveria colapso na saúde e chamou o governador João Dória de “lunático”. Defendeu a cloroquina que deveria, segundo prescreveu, ser distribuída para todos os infectados. Depois em um pronunciamento no dia 19 ele pediu o fim do confinamento, acusou governadores de histeria, pediu a volta das aulas porque “raros são os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos” e completou: “pelo meu histórico de atleta, caso eu fosse infectado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria acometido de uma gripezinha, um resfriadinho”. Uma fala reveladora de que ele não pensa no que pode acontecer ao país, mas apenas com ele mesmo.

Bolsonaro mostrou nesse um mês — do dia 10 de março ao dia 10 de abril — várias vezes, desprezo pela vida humana. No dia 26, ao chegar no Alvorada, debochou: “o brasileiro tem que ser estudado, ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha tá certo?”. No dia seguinte disse “algumas mortes terão, paciência”. E depois, em entrevista ao José Luiz Datena, “alguns vão morrer? Vão, ué. Essa é a vida”. Em seguida, no dia 30, no mesmo trôpego linguajar, “vocês acham que gente morrerão? Vai morrer gente”.

No dia 31 ele voltou à televisão para outro pronunciamento e alguns se iludiram com uma suposta mudança de tom. Houve aqui e ali alguma frase que refletia a realidade, como a de que “esse é o maior desafio da nossa geração”. Foram trechos inseridos pelos conselheiros militares do presidente que passaram o dia tentando salvar o pronunciamento que pela manhã ele prometera fazer. Seu objetivo era distorcer as palavras do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde.

No dia primeiro de abril, em mais um ato da sua campanha de acusar os governadores pela crise econômica, ele postou um vídeo que transmitia uma informação falsa de desabastecimento na Ceasa de Belo Horizonte. No mesmo dia, comparou o coronavírus à chuva. “Você vai se molhar, mas não vai morrer afogado”.

Depois de tantas palavras de menosprezo à vida, é difícil acreditar na sinceridade do que ele disse em novo pronunciamento esta semana, quando se solidarizou com as famílias das vítimas. De novo, o objetivo era defender a cloroquina, usando o argumento de que o médico Roberto Kalil a usara.

Durante todo esse mês ele fritou em público o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, desautorizando diariamente tudo o que ele recomenda e todos os alertas que ele faz.

Nesse mês em que o Brasil entrou em espiral de infectados e mortos e se assusta com a dimensão ainda desconhecida da pandemia, tudo o que o presidente da República fez foi brigar com governadores, minar seu ministro, ficar de picuinhas, receitar remédio duvidoso. Na crise, Bolsonaro provou que não sabe exercer o cargo de presidente da República.

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