quarta-feira, 22 de abril de 2020

Monica de Bolle* - Quarentenas intermitentes

- O Estado de S.Paulo

A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las

Quarentenas intermitentes muito provavelmente serão o nosso “novo normal”. Queiramos ou não aceitar essa nova realidade, a verdade é que ela já está posta. É esse o cenário com o qual trabalham cientistas, infectologistas e pessoas que estão na linha de frente do combate à covid-19. As razões são múltiplas: da falta de conhecimento sobre a imunidade conferida pelo vírus à imprevisibilidade das manifestações clínicas da doença; das dificuldades de desenvolver uma vacina para um vírus novo à logística de distribuí-la por todo planeta, caso ela venha a existir.

Não sou infectologista. Contudo, como economista tenho a obrigação de manter-me bem informada sobre os determinantes da crise econômica e do quadro futuro que se apresenta. Esses determinantes não são de natureza econômica: são provenientes do comportamento de uma fitinha de RNA, o vírus Sars-CoV-2. Tenho conversado e interagido com profissionais das áreas de saúde pública, infectologia, virologia, microbiologia. Não tratar do que se passa de forma interdisciplinar é erro certo não apenas na formulação dos cenários que se apresentam, mas, sobretudo, nas medidas econômicas necessárias para atender às necessidades da população.

Já escrevi nesse espaço que o quadro de quarentenas intermitentes requererá, necessariamente, a adoção de uma renda básica permanente: de outro modo, não haverá como sustentar a população mais vulnerável do País nos momentos em que o recrudescimento da epidemia resultar em medidas de distanciamento ou isolamento sociais. Em artigos para este jornal, para a Revista Época e em vídeos no meu canal do YouTube tenho dito à exaustão que o momento pede que todos comecem a se preparar para uma nova realidade. Não retornaremos ao mundo que conhecíamos em janeiro de 2020 tão cedo – talvez esse mundo tenha já desaparecido para sempre.

Fazer chegar essa mensagem aos ouvidos das pessoas, tarefa para a qual eu e muitos outros temos nos dedicado, é muito difícil. Evidentemente, ninguém quer acreditar que o modo de vida com o qual estavam acostumados se foi. Mas é preciso preparar-se para isso e acreditar no que a ciência nos tem dito.

A economia das quarentenas intermitentes é algo que não conhecemos. É um sistema que não funciona da forma relativamente contínua com a qual estamos acostumados, mas um sistema que soluça e engasga. Para atenuar esses espasmos e a volatilidade deles decorrente, tenho insistido, junto com outras pessoas, que é preciso pensar na reconversão da indústria. A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las.

Esse esforço passa pela produção em escala de equipamentos hospitalares diversos, incluindo os de proteção individual, de que toda a população precisará quando as quarentenas forem temporariamente relaxadas. Abordei esse tema em entrevista concedida ao programa Roda Viva na última segunda-feira. Serviços também precisarão se readequar: restaurantes, por exemplo, terão de aprender a funcionar em rodízios, com poucos clientes e com uma capacidade de entrega que hoje não têm. Comerciantes terão de adaptar seus negócios para a convivência com o vírus, redesenhando normas e adotando plataformas online quando possível. Também precisarão, inevitavelmente, contar com serviços de entrega.

Novas tecnologias terão de ser desenvolvidas. Elevadores não poderão ter botões, já que são foco de contaminação. Deverão ter sensores térmicos? Tecnologias de reconhecimento de voz? É provável que a indústria tecnológica dê um salto de dez anos, que o processo de automação, já em curso, ganhe imenso ímpeto. Nesse caso, as relações de trabalho haverão de mudar ainda mais rapidamente, tornando a adoção da renda básica permanente mundo afora uma medida indiscutivelmente necessária.

Para aquelas empresas que podem trabalhar em rodízios, reduzindo o número de pessoas nos escritórios, o trabalho de casa será uma realidade que veio para ficar. Vamos precisar de mais capacidade para os serviços de internet, testemunharemos o crescimento em larguíssima escala da indústria de aplicativos para fins diversos. A segurança online será exponencialmente mais importante do que já é.

A regulação da privacidade e da comercialização de dados precisará sair do papel.

Deixo essas ideias para que reflitam sobre o cotidiano, sobre tudo aquilo em que não paramos para pensar. Deixo-as para que comecem a se adaptar desde já.

* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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