sexta-feira, 17 de abril de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

• Mandetta sai, e o coronavírus permanece – Editorial | O Globo

Troca por Nelson Teich ocorre em momento delicado, na fase de aceleração da epidemia no país

Não há lembrança da demissão de um ministro considerado eficiente, com mais de 75% de aprovação popular, e durante a fase de agravamento de uma crise cataclísmica no seu setor. A soma de ineditismos foi obtida ontem pelo presidente Bolsonaro ao confirmar o esperado afastamento do ortopedista Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde, substituindo-o pelo oncologista Nelson Teich.

As circunstâncias colocam pesadas responsabilidades sobre o presidente e o novo ministro. Mesmo sem essas peculiaridades, não seriam leves.

Enquanto há a troca de ministros, a epidemia da Covid-19 já deixa no mundo 2,1 milhões de infectados e quase 145 mil mortos. No Brasil, 30.425 contaminados e 1.924 mortos. A crise está em rápida evolução e não admite paralisia na máquina de saúde do setor público, o que passa por uma articulação bem azeitada no âmbito do SUS, em que compartilham esforços União, estados e municípios, espaço que Luiz Henrique Mandetta demonstrou dominar. Nesta hora, não pode haver desencontros nesta articulação.

Mandetta se compromete a ajudar Teich na transição, com a colaboração de sua ex-equipe de servidores técnicos do Ministério da Saúde, comprovadamente capazes de dar um eficiente apoio a Nelson Teich. Além da evolução da doença, que está na fase inicial de expansão no país, há outros problemas. Dois deles, o tempo que passa e a defesa constante feita pelo presidente do relaxamento do isolamento social — principal motivo do desentendimento com Mandetta —, que cabe a Teich atender. Não há problema em defender o fim do distanciamento social, objetivo de todo país. A questão é quando e como.

O novo ministro apresentou-se com um reconfortante discurso técnico, depois de ser anunciado por Bolsonaro com um pronunciamento em que mais uma vez falou de sua preocupação com o desemprego, ou falta de trabalho, causado pelo isolamento.

O que deve ter levado Bolsonaro a escolher Teich, um dos ministeriáveis na época de formação do governo, foi explicado na exposição que o novo ministro fez de linhas de trabalho, em que defendeu a realização de testes e do levantamento de dados e “inteligência”, para a tomada de decisões corretas, em busca da volta à normalidade de “forma rápida”. Mas não abrupta.

Se houver alguma tensão entre Nelson Teich e o presidente, ela poderá surgir sobre o entendimento do que é esta “forma rápida”. O novo ministro, como a grande maioria dos médicos, é defensor do isolamento horizontal, excetuados os setores essenciais. A diferença, para o presidente, é que ele lhe entrega um plano de saída. Ou pelo menos assim entende Bolsonaro.

Não há muito tempo para adaptação de Teich ao cargo, nem de Bolsonaro ao novo ministro. O número de casos aumenta, e UTIs de hospitais públicos começam a ficar superlotadas de vítimas da Covid, o que tem relação com a política de isolamento social. Quanto mais frouxa, como deseja Bolsonaro, mais vítimas.

• Epidemia expõe semelhanças entre Bolsonaro e Trump, além do estilo – Editorial | O Globo

Os dois presidentes são contra o isolamento social, porque temem efeitos da recessão nos seus projetos

Seguidores do nacional-populismo, Donald Trump e Jair Bolsonaro têm reações semelhantes em situações críticas. O próprio estilo de um lembra o do outro, ressalvadas as diferentes formações. São autoritários, não se notabilizam pela sinceridade — a imprensa americana costuma contabilizar as comprovadas inverdades proferidas pelo presidente — e usam bastante as redes sociais para atingir seus objetivos políticos. Nas respectivas eleições, em 2016 e 2018, houve acusações de que a internet serviu de instrumento desleal de captura de votos. Por isso, Trump teve o processo de impeachment aberto na Câmara dos Representantes e rejeitado pelos senadores.

O comportamento dos presidentes na epidemia da Covid-19 também é um ponto de contato muito estreito entre eles. Trump foi convencido de que a cloroquina seria a solução contra a epidemia, e o mesmo aconteceu com Bolsonaro. Essa história passa por grupos radicais de direita do Partido Republicano, segundo o “Washington Post”, e envolve o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani, que se tornou advogado pessoal do presidente. O medicamento passou a ser visto por Trump como a bala de prata que resolveria a sua reeleição em novembro. Seguir esta pista deve levar ao entorno de Bolsonaro, que é conectado com radicais do Partido Republicano.

Os dois também são contra o isolamento social, e tentam suspendê-lo, até agora sem êxito. Está evidente que se preocupam com os reflexos político-eleitorais da crise em seus projetos de poder, sem dar atenção ao aspecto humanitário da pandemia. No momento, enquanto Bolsonaro aumenta a pressão para apressar o fim o distanciamento social, Trump faz o mesmo.

A diferença é que Brasil e Estados Unidos encontram-se em estágios diferentes da epidemia: o primeiro, nas fases iniciais de aceleração do contágio; o segundo, com alguns estados demonstrando terem chegado ao ápice, acumula números antes inimagináveis de contaminados (640.014) e mortos (31.002). Os EUA viraram o epicentro da tragédia. E nenhum dos dois países pode relaxar suas políticas. No caso americano, adotada tardiamente.

Bolsonaro já ameaçou suspender o isolamento por decreto presidencial, mas a medida seria derrubada pelo Congresso ou Supremo. Já Trump, em entrevista coletiva na segunda-feira, esboçou o mesmo, no país conhecido pelo federalismo: “Quando alguém é presidente dos Estados Unidos, sua autoridade é total”. Governadores discordam, e já criaram fóruns para se coordenarem no relaxamento paulatino das medidas. Andrew Cuomo, do estado de Nova York, o mais atingido pela Covid-19, foi seco: “O presidente não tem autoridade total. Temos uma Constituição e não um rei”.

• Bárbaros no portão – Editorial | Folha de S. Paulo

Com troca de ministro em plena crise, Bolsonaro volta a desperdiçar energias

Enquanto os bárbaros ameaçam arrombar o portão, as autoridades da cidade sitiada discutem o sexo dos anjos. A lamentável confusão que culminou na troca do ministro da Saúde na fase mais crítica da luta contra a epidemia do novo coronavírus faz evocar essa imagem.

O presidente da República, convertido por sua ignorância e pusilanimidade no maior estorvo à coordenação dos esforços sanitários, é o único responsável por ter produzido mais um ruído em torno do nada. Figura minúscula da política, insiste em desperdiçar energias de um país em emergência.

Em razão dessa conduta abstrusa de Jair Bolsonaro, uma camisa de força institucional foi sendo tecida em torno da Presidência. Governadores e prefeitos, gestores diretos da saúde pública, tiveram de tomar decisões onerosas para seus cidadãos protegendo-se de uma saraivada de críticas desonestas e desinformadas do chefe de Estado.

A ameaça constante de que decretos do Planalto viessem a se sobrepor às ordens de restrição de atividades das autoridades locais exigiu do Supremo Tribunal Federal a declaração, unânime entre os ministros, da ilegitimidade de atos unilaterais do Executivo federal.

Os presidentes e as maiorias da Câmara e do Senado armaram-se para rebater e rechaçar as barbaridades que pudessem surgir da famigerada caneta de Jair Bolsonaro.

O próprio Ministério da Saúde teve de aprender a operar num ambiente hostil, em que o presidente da República contrariava, com gestos e falas, a normativas da pasta, que não diferem em nada das que prevalecem em todo o planeta.

A muito custo, reitere-se, foi erguida essa barreira de contenção ao poder de destruição do chefe do governo, em meio à batalha sem precedentes contra a pandemia. Por isso, não será uma troca de ministro que colocará tudo a perder.

A opção pelo oncologista Nelson Teich tem a vantagem de eliminar nomes exóticos e obscurantistas que eram cogitados. Mas o desconhecimento, pelo novo ministro, do que seja a complexa máquina da saúde pública no Brasil vai cobrar um preço de aprendizagem em que o país não precisaria incorrer.

Defender, como Teich, a massificação dos testes é correto, porém insuficiente. A questão é como fazer um país que testa pouquíssimo passar a processar milhões dessas avaliações em poucos meses.

E como seu ministério vai ajudar agora, emergencialmente, os hospitais cujas UTIs estão se exaurindo?

Essa não é uma questão teórica. Brasileiros vão morrer desassistidos na fila da saúde pública se ela não for respondida com ações tempestivas e muito bem planejadas.

Os desafios do novo ministro são concretos e prementes. Tudo o que ele não tem é mais tempo a perder.

O boleto da escola – Editorial | Folha de S. Paulo

Projetos para corte de mensalidades na quarentena miram só um lado do problema

A interrupção das aulas em todo o país, por efeito da pandemia de Covid-19, impõe desafio imenso às escolas, obrigadas a rever seu planejamento e buscar formas de oferecer o ensino a distância.

No caso dos estabelecimentos particulares, uma outra discussão vem ganhando corpo. Nos Legislativos de ao menos 11 estados, além de no Congresso Nacional, foram apresentados projetos que determinam a redução das mensalidades, em proporções que variam de 10% a 50%, na quarentena.

Compreende-se o intuito dos parlamentares de auxiliar famílias que arcam com a educação dos filhos e, neste momento, se veem com a renda reduzida. A solução aventada, contudo, é problemática, pois esbarra em dificuldades legais e ignora a realidade do ensino.

Cabe considerar, em primeiro lugar, que a rede particular constitui universo bastante variado. Enquanto algumas escolas estão ligadas a grandes conglomerados educacionais, que lhes dão maior margem de manobra no atual momento, a maioria é pequena e local —e portanto mais sensível a quedas bruscas de receita.

Soma-se a isso o fato de que, embora algumas instituições possam ter tido seus custos reduzidos, a maior parte dos gastos (75% em média) é fixa e se dá com o pagamento a professores e funcionários.

Assim, um desconto generalizado nas mensalidades pode ter como efeito colateral a demissão de profissionais, quando não o fechamento de estabelecimentos.

Além disso, especialistas em direito do consumidor apontam que as propostas legislativas, se aprovadas, podem vir a ser consideradas inconstitucionais, ao interferirem de forma injustificada na livre iniciativa. Cria-se, assim, um cenário de insegurança jurídica, em que as reduções podem terminar, posteriormente, revertidas nos tribunais.

A forma menos imperfeita de encaminhar a questão parece ser por meio de negociações individuais com as famílias mais afetadas, que resultem em descontos provisórios ou parcelamento das mensalidades, como defende a Federação Nacional das Escolas Particulares.

Dentro desse esforço coletivo, cabe aos colégios utilizar, a despeito dos inevitáveis improvisos, as ferramentas do ensino a distância, para minimizar as perdas no aprendizado. Ademais, as aulas presenciais devem estar entre as primeiras atividades a serem retomadas quando superada a pior etapa da disseminação do novo coronavírus

• Só o vírus ganha – Editorial | O Estado de S. Paulo

Mesmo que revele uma competência ímpar, Nelson Teich precisará de um tempo que não existe. A troca de ministro é imprudência que só se explica pelos interesses eleitorais de Jair Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro decidiu trocar seu ministro da Saúde em plena pandemia de covid-19. Trata-se de uma decisão exclusivamente política, já que o atual titular do Ministério, Luiz Henrique Mandetta, vinha fazendo um trabalho tecnicamente bastante razoável, em especial quando consideradas as duríssimas circunstâncias – que, não bastasse a ferocidade do coronavírus em si, incluem sabotagem explícita do próprio Bolsonaro e dos filhos do presidente.

O substituto de Mandetta, o oncologista Nelson Teich, terá o imenso desafio de montar uma nova equipe e se inteirar de toda a estrutura montada para enfrentar a pandemia justamente no momento em que esta começa a atingir o pico no País. Mesmo que revele competência ímpar, o novo ministro precisará de tempo – e tempo é um luxo que as autoridades sanitárias na linha de frente desta crise não têm.

Portanto, a troca de ministros é uma evidente imprudência de Bolsonaro, que só se explica por seus interesses eleitorais. O fato de que Luiz Henrique Mandetta desfruta de popularidade muito superior à do presidente explica, em grande medida, o nervosismo de Bolsonaro com seu agora ex-ministro. O presidente se sentiu desautorizado por Mandetta quando este resolveu ignorá-lo e, baseado na ciência, sustentou o discurso segundo o qual a única forma de conter a pandemia é manter a população em isolamento social.

Como se sabe, Bolsonaro é fervoroso defensor do fim do isolamento e da “volta à normalidade”, mesmo que isso cause mais mortes – mas isso, para o presidente, “é da vida”. Seu comportamento é tão irresponsável que mereceu lugar de destaque na imprensa internacional.

O Washington Post, por exemplo, considerou Bolsonaro “de longe o caso mais grave de improbidade” entre os líderes mundiais ao lidar com a crise. O Financial Times, por sua vez, colocou Bolsonaro no que chamou de “Aliança do Avestruz”, grupo dos únicos quatro chefes de governo no mundo que minimizam ou negam a ameaça da covid-19 – já chamada de “gripezinha” pelo presidente brasileiro. E a revista The Economist chegou a dizer que Bolsonaro foi tão longe que em seu próprio governo é tratado “como aquele parente problemático que dá sinais de demência”.

Obcecado em mostrar sua autoridade – “eu sou o presidente”, costuma repetir, como se isso fosse necessário –, Bolsonaro provavelmente espera que o novo titular do Ministério da Saúde não o contrarie e, sobretudo, não o ofusque. Não será surpresa se, sob nova direção, o Ministério passar a chancelar os palpites de Bolsonaro – que, além de um inviável “isolamento vertical”, incluem a receita de um remédio cuja eficácia não está comprovada, ao contrário de seus efeitos colaterais, já suficientemente documentados. Também não será surpresa se, no embalo desse discurso, mais e mais cidadãos se sentirem estimulados a abandonar a quarentena, como, aliás, já está acontecendo, o que tende a acelerar o colapso do sistema hospitalar.

O presidente quer também um ministro da Saúde que esteja a seu lado na briga contra os governadores, a quem atribui a responsabilidade pela crise econômica que está erodindo sua popularidade e ameaça sua reeleição. O ex-ministro Mandetta, ao contrário, sempre deixou claro seu pleno alinhamento com as duras medidas adotadas pelos governadores, pois não é possível falar em retomada da atividade econômica com um vírus letal à solta por aí.

Diante disso, espera-se que os governadores e prefeitos fiquem firmes na manutenção do isolamento social. Numa vitória do bom senso, o Supremo Tribunal Federal decidiu na quarta-feira passada que Estados e municípios têm autonomia para estabelecer o grau do isolamento necessário para conter o avanço da pandemia, contrariando o presidente Bolsonaro, que julga ter o poder de deliberar a esse respeito.

Todas essas garantias institucionais, no entanto, não serão suficientes para impedir que um Ministério da Saúde subserviente ao obscurantismo bolsonarista cause ainda mais confusão – com a qual somente o vírus ganha. Como disse o ex-ministro Mandetta à Veja, “o vírus não negocia com ninguém, não negociou com o Trump, não vai negociar com nenhum governo”. Só nos resta esperar que o novo ministro cultive as virtudes da paciência, da prudência e do bom senso.

• A importância de ficar em casa – Editorial | O Estado de S. Paulo

É preciso que os paulistas respeitem isolamento social para espaçar no tempo número de infectados

“Se os pacientes continuarem a chegar nesse ritmo, a gente vai começar apenas a rezar.” Esta declaração foi dada ao Estado por uma enfermeira que trabalha no Hospital Municipal do Tatuapé, na zona leste da capital paulista. Os 32 leitos da UTI da unidade – 10 exclusivos para pacientes infectados pelo novo coronavírus e outros 22 para as demais ocorrências – estão quase totalmente ocupados (77%), cenário que motivou o desabafo da enfermeira diante da iminente impossibilidade de prestar socorro a novos pacientes graves que necessitem de terapia intensiva. Sua fala expressa a um só tempo os sentimentos de impotência e resignação de muitos profissionais da saúde que têm de lidar na linha de frente com os reflexos do comportamento descuidado de um número cada vez maior de paulistas.

Rezar é importante em um momento difícil como este. Traz conforto e esperança para o espírito dos que professam uma fé religiosa no enfrentamento de uma moléstia ainda por ser totalmente entendida pela ciência. Contudo, orações não podem ser a única alternativa à disposição dos profissionais da saúde para evitar mortes. É absolutamente imperioso que os paulistas colaborem com eles e respeitem o isolamento social a fim de espaçar no tempo o número de infectados pelo novo coronavírus. Assim, preserva-se a capacidade de atendimento dos hospitais e mais vidas poderão ser salvas. Enquanto não houver uma vacina contra o Sars-CoV-2 ou a chamada “imunização de rebanho”, quando 80% de um grupo social adquire anticorpos contra um patógeno, não há melhor forma de evitar o aumento descontrolado do número de casos de covid-19 do que permanecer em casa. Os que puderem fazê-lo, é evidente.

A lotação da UTI do Hospital Municipal do Tatuapé não é um caso isolado. O Hospital Geral de Pedreira, próximo a Diadema, já tem 87% dos leitos da UTI ocupados. No Hospital da Vila Nova Cachoeirinha, a ocupação é de 86%. O governo de São Paulo prevê que em maio, quando se estima que haverá o pico de casos confirmados de covid-19 em São Paulo, todas – repita-se, todas – as vagas em UTI no Estado estarão ocupadas. Portanto, somente a adesão maciça da população ao isolamento social pode evitar que se chegue à situação-limite em que os médicos tenham de decidir quem vai e quem não vai para um respirador, ou seja, quem vive e quem morre.

Na segunda-feira passada, o porcentual de paulistas que permaneceram em casa chegou a 50%, bem abaixo da meta de 70% definida pelo governo estadual. “Temos de entender que, se mantivermos este grau de isolamento social, provavelmente teremos lotação dos leitos de UTI a partir de maio”, disse o secretário estadual de Saúde, José Henrique Germann. Esperava-se que o esgotamento da capacidade de atendimento de terapia intensiva no Estado só ocorresse em julho, mas o aumento do número de pessoas que passaram a não respeitar o isolamento social fez a Secretaria da Saúde rever suas projeções.

Os paulistas têm demonstrado um comportamento ambivalente nesta crise. Por um lado, há ações de solidariedade e amor ao próximo como em poucas ocasiões se viu. Cidadãos de todas as classes sociais têm ajudado os mais carentes de acordo com as suas possibilidades, formando uma rede de solidariedade capaz de renovar a fé no resgate de um espírito de coletividade que andava adormecido. Por outro lado, percebe-se nitidamente o aumento do número de pessoas que ignoram as recomendações das autoridades sanitárias e saem às ruas e formam aglomerações como se o vírus que está testando os limites do sistema de saúde não ceifasse milhares de vidas.

Não é improvável que, mais cedo ou mais tarde, o governador João Doria (PSDB) tenha de adotar medidas mais rigorosas para conter os cidadãos em casa. O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, disse ao Estado que é preciso “ser duro com o cidadão que não cumpre com seus deveres e coloca em risco a sociedade”. Que a consciência cívica e humanitária de cada cidadão prevaleça sobre a força do poder público.

• A desfaçatez de Donald Trump – Editorial | O Estado de S. Paulo

O presidente americano demonstra, mais uma vez, que é um perigo para a estabilidade global

Em meio aos esforços globais para lidar com a maior emergência sanitária em mais de um século, o presidente Donald Trump anunciou a suspensão dos repasses feitos pelos Estados Unidos à Organização Mundial da Saúde (OMS), algo em torno de US$ 400 milhões por ano. Trump acusou a OMS de administrar “terrivelmente mal” a pandemia de covid-19 e de “encobrir informações” com o objetivo de favorecer a China, país onde foi registrado o primeiro caso da doença e com o qual o americano vive às turras.

A decisão não chega a ser surpreendente. Desde que chegou à Casa Branca, Donald Trump não perdeu uma só oportunidade de desqualificar acordos, tratados e organizações multilaterais como a OMS, que, em sua visão, só se prestam a desfavorecer os Estados Unidos na razão inversa dos expressivos recursos que recebem de Washington. Mas até para seu padrão de comportamento, é estarrecedor o grau de desfaçatez do ocupante do cargo que até poucos anos atrás era a referência de liderança para o mundo democrático. Se há alguma liderança global que possa ser acusada de se portar mal na condução da atual crise, é justamente Donald Trump, cujo desdém inicial pela covid-19 pode ter custado a vida de milhares de americanos. Acuado pelos fatos, Trump se viu obrigado a mudar de atitude em relação à doença, passando a defender as medidas preconizadas pelas autoridades sanitárias. Seus imitadores mais sagazes o acompanharam no recuo. Mas ainda há os que insistem em brigar com a realidade.

Em entrevista coletiva na terça-feira passada, Donald Trump disse que “os contribuintes americanos fornecem entre US$ 400 milhões e US$ 500 milhões para a OMS anualmente”, o que contrasta com os cerca de US$ 40 milhões que são repassados pela China à organização. “Como principal patrocinador da OMS, os Estados Unidos têm o dever de fiscalizar suas ações e insistir em sua total responsabilização”, concluiu o presidente americano.

É possível que a OMS possa ter falhado em sua missão de promover a saúde e o bem-estar no curso da pandemia de covid-19. Por ora, não há qualquer dado que indique esta falha. Para tomar uma decisão de efeito global, Donald Trump baseia-se apenas em sua percepção. Mas supondo que o presidente americano esteja correto em sua avaliação, seria este o momento mais indicado para sufocar financeiramente a OMS? É evidente que não. Ao fazê-lo, Trump deixa claro que sua suposta preocupação com as boas práticas internacionais para enfrentar a emergência sanitária é mero pretexto para, no fundo, promover seus interesses eleitorais. Em meio à campanha pela reeleição, o incumbente sabe que seu nacional-populismo cala fundo nos corações de milhões de americanos.

Outra possibilidade, não excludente, é que, ao cortar o financiamento da OMS, Trump pretende desviar a atenção sobre sua própria atuação calamitosa. Membro da Comissão de Relações Exteriores do Senado, o democrata Chris Murphy afirmou que, ainda que erros tenham sido cometidos pela OMS e pela China no tratamento inicial da crise, na verdade, o presidente americano busca apagar seu fracasso da memória de seus concidadãos. “Neste momento, há um esforço coordenado entre a Casa Branca e seus aliados para encontrar bodes expiatórios pelos erros fatais que o presidente cometeu no início da crise”, disse o senador.

Mais uma vez, Donald Trump demonstra que pode ser uma ameaça à estabilidade global. Não há razão que justifique uma deliberada ação de enfraquecimento da OMS no exato momento em que o mundo inteiro clama desesperadamente por uma coordenação global de esforços para lidar com um problema gravíssimo como é a disseminação desenfreada do novo coronavírus. A OMS é, por excelência, a entidade apta a organizar estes esforços.

Eventos extraordinários às vezes revelam ao mundo líderes extraordinários. A pandemia de covid-19, ao contrário, está apenas confirmando a pequenez de Donald Trump.

• Bolsonaro dá o passo mais arriscado e demite Mandetta – Editorial | Valor Econômico


Atitude aumenta a chance de desastres humanitários, de cuja responsabilidade Bolsonaro não se desvencilhará

Em meio à maior crise econômica e sanitária em décadas, o presidente Jair Bolsonaro resolveu seguir seus instintos - péssimos conselheiros - e demitiu o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, a poucos dias de o país chegar ao pico da pandemia de coronavírus. Bolsonaro, que menosprezou a doença desde o início (uma “gripezinha”) e afrontou os conselhos médicos e o bom senso ao misturar-se a aglomerações, quando todo o país recolhia-se a seus lares, quer que os brasileiros voltem logo ao trabalho. O presidente desdenha de quem pensa ao contrário - de todos, no caso: Congresso, Supremo Tribunal Federal, a grande maioria das entidades médicas, a Organização Mundial da Saúde e os governos dos países desenvolvidos. Agora deu um passo que aumenta a chance de desastres humanitários, de cuja responsabilidade não se desvencilhará.

Livrar-se de Mandetta, um aliado, nunca foi problema para o presidente. Aliás, o tratamento execrável que dispensa a amigos e apoiadores não difere muito do que dedica aos opositores. Gustavo Bebbiano criou a estrutura para elegê-lo e foi o primeiro a ser demitido do governo. Onyx Lorenzoni, aliado de primeira hora, foi escorraçado da Casa Civil. O general Santos Cruz, da Secretaria de Governo, caiu por intrigas dos filhos do presidente.

No círculo do presidente, onde campeiam mediocridades agressivas, como as do ministro da Educação, o ex-ministro da Saúde destacou-se por não ser falastrão e por executar com determinação e seriedade uma tarefa de gigantesca responsabilidade. Bolsonaro esquece de, ou não sabe quais são, suas responsabilidades. Não foram os governadores que inventaram o distanciamento social adotado país afora. Foram orientações de seu governo, via Ministério da Saúde - passos certos na hora certa. Faltam equipamentos, testes, materiais de apoio, leitos e muito mais, mas Mandetta se propôs a sanar essas lacunas ao longo de uma difícil travessia.

Com o apoio de três em cada quatro brasileiros (76% pelas pesquisas), Mandetta não foi derrotado pelo vírus, mas por seu chefe. Desavenças irreconciliáveis podem ser resolvidas de forma cirúrgica e cortês. Não foi o caso - o estilo é o homem. Quando se iniciou a batalha contra a covid-19, não se sabia o que Bolsonaro pensava a respeito, afora que não a considerava grande ameaça. Quando a economia começou a parar pelo uso da única tática capaz de deter proliferação desenfreada do vírus, usada no mundo inteiro, o presidente viu ruir o seu sonho de reeleger-se com tranquilidade. A partir daí, defendeu que era viável o “isolamento vertical”, receitou cloroquina e espezinhou em público Mandetta.

A “ala militar”, que não consegue controlar nem convencer o presidente, ajudou-o a isolar Mandetta. Em entrevista na qual disse o óbvio ao Fantástico, o ministro ganhou um “cartão” do vice-presidente Hamilton Mourão, por rompimento da hierarquia - conceito que exclui grosserias do chefe. A tal “ala” viu provocação nas declarações e deu apoio à demissão subsequente.

O novo ministro é Nelson Teich, que tem boas relações com Fabio Wajngarten (infectado), da Secretaria da Comunicação e com financiadores de campanha do presidente, como Meyer Negri, fundador da Tecnisa. Em sua primeira entrevista, Teich comportou-se como se o trabalho contra a pandemia tivesse começado agora - e esboçou como metas tudo o que Mandetta já vinha fazendo. “Tudo será feito de maneira técnica e científica”, disse, repetindo o mantra de seu antecessor, que atiçou a fúria do presidente. Afirmou que buscará “informação sólida”, sem a qual se age à base da “emoção” e que não há dicotomia entre economia e saúde. Prometeu testes e mais testes para saber o que “é essa doença hoje”.

Tenso, Bolsonaro o antecedeu na entrevista com a missão: “Gradativamente, temos que abrir o emprego no Brasil”. O isolamento precisa ser “flexibilizado”, o que não deve ser feito bruscamente, disse. Recai sobre os ombros de Tech a missão inglória de fazer o que Bolsonaro não faz e condena. O combate à pandemia se dá nos Estados e, nos dois mais atingidos, Rio e São Paulo, o presidente vê no isolamento uma arma eleitoral. Recursos passam pelo Congresso, onde o governo não tem base. O presidente do STF, Dias Toffoli, abriu ontem a sessão virtual louvando a ciência e o isolamento, antes de o tribunal dizer que os entes federados têm o direito de tomar as medidas que o presidente deplora.

Isso tudo em meio a uma cruel pandemia e ao lado de um presidente volúvel e irascível, que a toda hora muda de rumo.

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