quinta-feira, 30 de abril de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

• STF cumpre papel pedagógico perante Bolsonaro – Editorial | O Globo

Inquéritos instaurados na Corte instruem presidente a entender quais são os limites do Executivo

Bolsonaro tem a persistência dos radicais. Não perde o foco, mesmo que a sensatez e os fatos o aconselhem a mudar o rumo. Entre o fim de semana e ontem o presidente sofreu dois percalços no Supremo. Um deles na intenção de nomear para a direção-geral da PF o delegado Alexandre Ramagem, chefe da sua segurança na campanha, ocasião em que o policial se tornou próximo dos filhos do presidente, muito atuantes no governo do pai e nos seus projetos políticos.

Mas o ministro Alexandre de Moraes aceitou mandado de segurança do PDT contra a indicação, e Bolsonaro, a contragosto, foi obrigado a suspender a posse de Ramagem, marcada para ontem. Porém, não se fez de rogado. Ao falar na solenidade de duas outras posses — de André Mendonça no Ministério da Justiça e Segurança Pública e de José Levi como novo advogado-geral da União — o presidente lamentou não poder fazer o mesmo com o amigo dos filhos e, pelo visto, dele também, mas disse que este “sonho” se concretizará.

Seria exagero qualificar a afirmação de Bolsonaro como um desafio à Justiça. Pode estar mais para o campo da teimosia e da obsessão. Fica, porém, a certeza, criada desde o início da sua gestão e consolidada agora, na conjugação de duas crises mundiais históricas, de saúde e econômica, que o presidente precisará sempre ser contido pelo Legislativo e Judiciário, em um processo pedagógico de choques. E que haja tantos choques quantos forem necessários.

Ao começar seu pronunciamento ontem, Bolsonaro se referiu ao preceito constitucional do artigo 1º da Carta: são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. E completou: “não posso admitir que ninguém ouse desrespeitar ou tentar desmontar a nossa Constituição”, um recado ao ministro da Corte Alexandre de Moraes.

O presidente faz uma leitura rasa da Constituição, não entende que independência não significa poder absoluto. A contestação da ida de Ramagem para a PF foi construída por Alexandre de Moraes com base nos conhecidos princípios da impessoalidade, da moralidade administrativa e da legalidade. As denúncias do ministro Sergio Moro ao explicar as razões de sua demissão configuram interferência política na PF com um interesse prioritário específico do presidente: os inquéritos, também da alçada de Moraes, que tratam da usina de fake news contra a Corte e de ameaças a ministros, e ainda dos porões que organizam as manifestações antidemocráticas. Sabe-se que pistas levam a filhos do presidente.

O pronunciamento-delação de Moro também está citado no outro revés de Bolsonoro na Corte, a decisão do ministro Celso de Mello sobre o pedido de abertura de inquérito feito pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, para investigar Moro e o presidente. O decano evitou o viés de Aras e centrou em Bolsonaro a argumentação, ao aceitar a abertura de investigações. Aqui, Bolsonaro não deve correr grandes riscos, pois o PGR pode arquivar o inquérito. Mas que Bolsonaro vá aprendendo os limites do seu poder.

• Presidente desrespeita famílias dos mais de 5 mil mortos pela Covid-19

Bolsonaro também tem responsabilidade no combate à pandemia do novo coronavírus

Na terça-feira, quando o Brasil registrou 474 mortes em 24 horas e ultrapassou a China em número de baixas pela Covid-19 (5.017 contra 4.643), o presidente Jair Bolsonaro não só se eximiu de responsabilidades como ainda desdenhou das mortes. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

Ontem, Bolsonaro culpou governadores e prefeitos. Afirmou que, por decisão do STF, estados e prefeituras têm autonomia para determinar medidas de contenção. “Questão de mortes, a gente lamenta as mortes profundamente. Sabia que ia acontecer. Agora, quem tomou todas as medidas restritivas foram governadores e prefeitos”.

Além do inconcebível desrespeito com as famílias de mais de 5 mil brasileiros que perderam suas vidas pelo novo coronavírus — muitos deles sem sequer receber atendimento —, Bolsonaro cometeu equívocos em seus argumentos. Evidentemente, governadores e prefeitos têm responsabilidade. Mas ela é compartilhada com a União.

O que fez Bolsonaro desde que os primeiros casos de Covid-19 foram registrados no país, levando governadores e prefeitos a decretarem o isolamento? Criticou a quarentena, a que já se referiu várias vezes como exagero. Está preocupado com o impacto na economia, que pode afetar seu projeto de reeleição. Sua ação mais visível foi a imprudente troca de Luiz Henrique Mandetta por Nelson Teich, na Saúde, em plena fase de aceleração da epidemia.

O presidente se equivoca também ao culpar as medidas de restrição pelas mortes. O isolamento não é uma invenção brasileira. Foi adotado em praticamente todos os países, em alguns de forma bem mais rigorosa. Não há outra maneira de conter a doença. Se não está dando melhores resultados é devido ao discurso dúbio num país em que governadores e prefeitos falam uma coisa e o presidente diz outra, incentivando a quebra das quarentenas.

Numa fase crítica da epidemia, o ministro Nelson Teich passa a ideia de imobilidade. Precisa apresentar logo o seu plano e resultados, mesmo que prévios, inclusive de medidas em curso, como o rastreamento da doença em todo o país. A sensação de inércia que as entrevistas do Ministério — acertadamente mantidas — têm passado não ajuda a população, e nem o ministro.

Enquanto Bolsonaro prega incessantemente o fim do isolamento, em São Paulo a prefeitura faz bloqueios educativos no trânsito. Caminha-se, de forma correta, para um lockdown. Nada muito diferente de outras metrópoles.

Ainda que Bolsonaro os rejeite, os números contundentes da Covid-19 no Brasil serão inexoravelmente colocados também em sua conta. Não por governadores, prefeitos ou pela imprensa, como diz. Mas pela História.

• A ética triunfa – Editorial | O Estado de S. Paulo

O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação do delegado Alexandre Ramagem para a direção da Polícia Federal (PF), atendendo a pedido do PDT. Em seu despacho, o ministro escreveu que, “em tese, apresenta-se viável a ocorrência de desvio de finalidade do ato presidencial” de nomear Alexandre Ramagem, “em inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.

Nem é preciso ser jurisconsulto para desconfiar das intenções do presidente Bolsonaro ao nomear Alexandre Ramagem para chefiar a Polícia Federal. Segundo o próprio presidente da República, seu objetivo era ter alguém de sua confiança na PF para obter informações – sabe-se lá quais e com que objetivos.

Ora, mesmo que o presidente Bolsonaro não tivesse alguns de seus filhos sob suspeita em casos investigados pela PF, a nomeação de um diretor da PF com a intenção explícita de ter acesso a informações já configuraria, em si, um atentado às leis e aos dispositivos constitucionais que obrigam a polícia a conduzir suas diligências de forma sigilosa – seja para impedir que os investigados destruam provas, seja para resguardar a imagem dos investigados. Ademais, o fato de que se trata da mais alta autoridade da República a requisitar informações não obriga nenhum servidor público a fornecê-las, se essa ordem for claramente ilegal, como seria o caso.

Todas essas limitações estão expressas de forma clara nos diversos códigos legais do País, e espanta que o presidente da República, que jurou respeitar a Constituição ao tomar posse, não veja nada demais em violá-las. Quando questionado a respeito da nomeação de um amigo pessoal para dirigir a PF, reagiu, com ares de indignação: “E daí?”.

Mais do que isso: Bolsonaro deixou claro, também, que quer fazer da PF sua polícia particular. Depois de anunciar a nomeação do amigo Alexandre Ramagem, o presidente exigiu que a PF reabrisse a investigação sobre a facada que sofreu durante a campanha eleitoral de 2018. O caso está encerrado há tempos – a PF concluiu, depois de exaustiva apuração, que o autor da facada, Adélio Bispo, agiu sozinho, e a Justiça Federal o considerou inimputável, em razão de graves transtornos mentais. Bolsonaro simplesmente não se conforma com esse resultado e acredita que há um mandante do crime: “Eu não tenho provas, tenho sentimento. O que for possível a Polícia Federal fazer, dentro da legalidade, para apurar quem pagou Adélio para me matar, vai fazer”.

Se o presidente está insatisfeito com o resultado das investigações, deveria, como qualquer cidadão nas mesmas circunstâncias, recorrer à Justiça para demandar novas diligências. O que não pode, como já está claro, é obrigar a PF – que, como lembrou o ministro Alexandre de Moraes, não é “órgão de inteligência da Presidência da República”, mas sim “polícia judiciária da União” – a encontrar o tal “mandante”, que só existe nas delirantes teorias bolsonaristas segundo as quais o presidente foi vítima de um complô “comunista”.

Mas a menção insistente de Bolsonaro a Adélio Bispo serve somente para animar a claque bolsonarista e desviar a atenção do fato, incontornável, de que a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da PF com o objetivo de franquear informações do órgão ao presidente fere os princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público – e já é objeto de investigação, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, para apurar possíveis crimes de advocacia administrativa e prevaricação, entre outros.

Depois dos reveses no Supremo, o presidente Bolsonaro decidiu afinal anular a nomeação de Alexandre Ramagem. No entanto, a julgar por seu comportamento desde a posse, há pouco mais de um ano, não será surpresa se Bolsonaro voltar à carga, testando a disposição do Congresso e do Judiciário de fazer valer os limites constitucionais ao poder presidencial. É preciso deixar claro para o presidente que seus desejos não adquirem automaticamente o status de lei, como é nas ditaduras; em uma democracia, o presidente deve demonstrar, de forma cristalina, que suas escolhas são voltadas para a preservação do bem comum, e não movidas por inconfessáveis interesses privados.

• Isolamento é a única saída – Editorial | O Estado de S. Paulo

Em 45 dias, morreu mais gente por covid-19 no Brasil, com população seis vezes menor, do que na China em 4 meses

Com população seis vezes menor, o Brasil superou a China em número de mortos por covid-19. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o país asiático registrou 4.643 óbitos desde o final do ano passado. Segundo dados divulgados nesta semana pelo Ministério da Saúde do Brasil, mais de 5 mil pessoas morreram no País em decorrência da infecção pelo novo coronavírus desde 17 de março. Em apenas 45 dias houve mais vítimas fatais da covid-19 no Brasil do que houve na China, local de origem da pandemia, em quatro meses. Decerto as informações oficiais que provêm do governo de Pequim devem ser recebidas com boa dose de ceticismo. A China tem muitos pontos fortes, mas transparência não é um deles. Igualmente notáveis são a subnotificação de casos no Brasil e a incorreção de milhares de registros de óbito em cartórios de todo o País. De todo modo, o marco oficial serve para suscitar reflexões sobre a reação brasileira à maior emergência sanitária deste século.

Desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro alinhou-se a um punhado de líderes políticos que minimizaram sua gravidade. Emparedados pelos fatos, alguns desses líderes voltaram atrás. Bolsonaro, contudo, segue aferrado à ideia de imediata “volta à normalidade”, ainda que isso represente enorme risco para a saúde dos brasileiros e para a capacidade de atendimento do sistema público de saúde. O presidente da República deu novas mostras de alheamento, insensibilidade e falta de empatia ao comentar o aumento do número de mortos por covid-19 no País. “E daí? Quer que eu faça o quê?”, perguntou Bolsonaro a um grupo de repórteres. “Eu sou Messias, mas não faço milagre”, debochou.

A Nação jamais buscou se socorrer dos dotes milagrosos de seu presidente. Dele não se espera outra coisa além de assumir a responsabilidade que recai sobre seus ombros de chefe de Estado e de governo nesta hora grave. “Vocês (a imprensa) não vão botar no meu colo essa conta (de mortos)”, disse Bolsonaro. O presidente atribuiu aos governadores o ônus pelo aumento do número de mortes, acusação injusta, haja vista que são justamente governadores e prefeitos os mais ciosos observadores das recomendações das autoridades sanitárias. Em entrevista coletiva, o governador de São Paulo, João Doria, recomendou que Bolsonaro “saia do ‘gabinete do ódio’ e visite os hospitais do País e que tenha compaixão” pelas vítimas e seus familiares. Não é pedir muito.

A situação do País é preocupante, tendo em vista que ainda não se atingiu o pico de casos de covid-19. Só não é pior graças à estrutura de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS), à dedicação inabalável dos profissionais da área da saúde das redes pública e privada, ao comportamento cívico e solidário de brasileiros que aderiram ao distanciamento social e se desdobram para encontrar formas de ajudar uns aos outros e, não menos importante, à ação responsável de governadores e prefeitos que compreenderam a dimensão do problema com o qual estão lidando e perceberam que estimular o isolamento é a única ação eficaz para evitar mais contaminações e mortes até que uma vacina contra o novo coronavírus esteja disponível.

Enfrentar a pandemia não é uma atribuição exclusiva do poder público. É crescente o número de pessoas nas ruas, como se um vírus mortal não estivesse em circulação. Não se trata, claro, dos encarregados de realizar serviços essenciais, que necessariamente não podem ficar em casa, mas daqueles que deixam o isolamento por incivilidade, egoísmo e autoconfiança irresponsável. Este grupo será tão responsável pelo colapso do sistema público de saúde – e pelo aumento de mortes – quanto qualquer autoridade desajuizada. Neste sentido, em nada ajuda a decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de liberar testes rápidos para detecção de covid-19 em farmácias. A baixa confiabilidade destes testes pode estimular comportamentos de risco. À falta de adesão espontânea ao isolamento, não será surpresa se governadores e prefeitos tiverem de recorrer a medidas mais duras para salvar vidas. Os que podem, fiquem em casa.

• Recordes negativos na economia – Editorial | O Estado de S. Paulo

Primeiras sondagens mostram, até agora, danos maiores que os da última recessão

Com enormes perdas em vendas, produção e geração de lucros, o setor industrial enfrentou o pior mês de março em dez anos, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI). O coronavírus tem causado estragos bem maiores que os da recessão de 2015-2016, segundo os dados conhecidos até agora. Além disso, os primeiros trancos da crise derrubaram, além dos negócios, a expectativa dos empresários em relação aos próximos meses. Não só na indústria, mas também no comércio, nos serviços e na construção, despencaram os índices de confiança, de acordo com sondagens da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Esses primeiros balanços confirmam o forte impacto da pandemia na maior parte das atividades. Só a agropecuária parece ter sido poupada, ou afetada menos severamente, pelas limitações decorrentes da pandemia. No começo de maio sairão os dados oficiais, coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, sobre os níveis de atividade nos setores urbanos em março, quando a economia foi atingida pela covid-19. Mas o quadro geral já é claro.

Com um tombo de 14,3 pontos em relação ao nível de um ano antes, o índice de evolução do produto industrial chegou a 33,3 pontos em março, segundo a CNI. Ficou bem abaixo, portanto, da linha de 50 pontos, fronteira entre os territórios positivo e negativo. Na série iniciada em 2010, o pior mês de março havia sido o de 2016, na fase mais feia da recessão, com índice de 47,2. O uso da capacidade instalada caiu para 58%, o menor nível de todos os meses nos últimos dez anos.

O emprego caiu bem menos que a produção. A queda foi de 48,5 pontos para 44,6 entre março de 2019 e março deste ano. As empresas, lembra a CNI, puderam recorrer a ajustes temporários, como redução da jornada, suspensão de contratos e férias coletivas. Foi um efeito das primeiras medidas do Executivo para frear o desemprego. Mas o resultado dessas medidas, já restrito, vai depender da duração e da intensidade das limitações econômicas.

Além disso, se os negócios forem reativados de forma precipitada, o rebote da epidemia e da crise econômica poderá ser muito grave. O presidente da República, outros políticos, muitos empresários e até trabalhadores parecem desconhecer ou desprezar esse risco, apontado por epidemiologistas e levado em conta por analistas econômicos de respeito.

Cabe, por enquanto, avaliar os danos já causados e planejar a retomada. Um quadro amplo dos estragos é proporcionado pelos indicadores de confiança produzidos pela FGV. Segundo a sondagem de abril, o Índice de Confiança da Indústria (ICI) caiu 39,3 pontos em um mês e chegou a 58,2 pontos, com desconto dos efeitos sazonais. Os dados indicam a maior queda mensal e o menor nível da série iniciada em 2001.

O recuo foi registrado nos 19 segmentos industriais cobertos pela pesquisa e foi puxado pelo Índice de Expectativas, com perda de 46,6 pontos, para o nível de 49,6. O Índice de Situação Atual caiu 31,4 pontos e chegou a 67,4. Todos esses níveis são os mais baixos da série. Nessa pesquisa, o número 100 divide os territórios positivo e negativo. O uso da capacidade instalada, medido em porcentagem (57,3%), também foi o mais baixo desde 2001. Também a sondagem da FGV mostra, por enquanto, danos maiores que os da recessão no último governo petista.

Duros abalos no varejo e nos serviços são também mostrados. No caso do comércio, a pesquisa ressalta as informações acumuladas de março e de abril. Em março, parte do varejo ainda cresceu, antes do isolamento social. No acumulado, só há um dado levemente positivo para hiper e supermercados, com ganho de 0,1 ponto. No conjunto do comércio houve baixa de 31,7 pontos. Na construção, o índice de confiança caiu 25,8 pontos em abril, queda recorde, e bateu em 65, nível mais baixo da série. Também nos serviços foi atingido o menor nível, de 51,1 pontos, da pesquisa iniciada em junho de 2008. Sobra um dado positivo: nos setores urbanos a ampla capacidade ociosa poderá facilitar a recuperação, se nenhuma grande imprudência for cometida.

• Desvio de finalidade – Editorial | Folha de S. Paulo

Ao recuar em nomeação para a PF, Bolsonaro recebe lição sobre limites do poder

Desde que assumiu a Presidência, Jair Bolsonaro vem conhecendo os freios impostos pelas instituições a arroubos personalistas e autoritários. A lição desta quarta-feira (29), relativa à gestão de um órgão essencial de Estado, foi sem dúvida a mais contundente até aqui.

Em boa hora, o mandatário se viu compelido a recuar da nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor da Polícia Federal. Pouco antes, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, suspendera liminarmente a decisão escandalosa.

Bolsonaro, como de hábito, testava os limites de seu mandonismo. Se não resta dúvida de que a escolha do chefe da PF está entre as atribuições exclusivas do presidente da República, igualmente parece óbvio que o uso desse poder para proteção de interesses pessoais e de sua família não está.

Como Moraes argumentou em sua decisão, nomeações para cargos públicos devem respeito não apenas às formalidades legais, mas também aos princípios de impessoalidade, moralidade e interesse público inscritos na Constituição.

Acusado pelo ex-ministro Sergio Moro de tentar interferir na PF com o fim de obter informações sobre investigações sigilosas, Bolsonaro reconheceu que seu objetivo era exatamente esse, como se nada houvesse de errado nisso.

“Sempre falei para ele: ‘Moro, não tenho informações da Polícia Federal. Eu tenho que todo dia ter um relatório do que aconteceu, em especial nas últimas 24 horas, para poder bem decidir o futuro dessa nação’”, declarou o presidente.

As acusações de Moro ainda serão investigadas pelo inquérito aberto pelo STF, que será conduzido pelo ministro Celso de Mello, mas o pronunciamento de Bolsonaro deixou claras suas intenções.

Há evidências de que ao chefe do Executivo incomodam investigações que miram filhos e aliados, e sobram motivos para desconfiar da escolha do delegado, de notória intimidade com a família.

Moraes apontou desvio de finalidade na nomeação, mesmo argumento usado pelo ministro Gilmar Mendes para impedir a posse do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como ministro do governo Dilma Rousseff em 2016.

Entendeu-se na época que a nomeação do líder petista tinha como objetivo principal livrá-lo das investigações conduzidas por Moro e pela Lava Jato em Curitiba.

Se a decisão de Mendes pareceu a esta Folha indevida, à luz do princípio da separação entre Poderes, deve-se reconhecer que as circunstâncias que o país vive hoje tornam mais defensáveis medidas excepcionais como a tomada por Moraes.

Desde a redemocratização do país, nenhum presidente desafiou os limites impostos pela Constituição como Bolsonaro, que submete as instituições democráticas a estresse permanente com o claro objetivo de enfraquecê-las. Em casos assim, cabe responder com firmeza aos que abusam de seu poder.

• O papel de Guedes – Editorial | Folha de S. Paulo

Presidente acerta ao reafirmar pauta econômica, mas ministro deve ação na crise

Em meio ao turbilhão de atos e declarações estapafúrdias das últimas semanas, o presidente Jair Bolsonaro mostrou ao menos um lampejo de sensatez ao esvaziar uma crise que se insinuava na condução da política econômica.

“O homem que decide economia no país é um só, chama-se Paulo Guedes”, disse na segunda-feira (27), tendo ao lado o ministro citado. O rapapé tinha sua razão de ser.

Na semana anterior, a ala militar do governo provocara alvoroço com o anúncio de um obscuro programa de obras cujo propósito, segundo o general Braga Netto, chefe da Casa Civil, seria fomentar a recuperação dos investimentos e da atividade produtiva depois de superado o impacto do combate à disseminação do novo coronavírus.

Tudo estava errado na divulgação da empreitada, obviamente avalizada por Bolsonaro. O plano exibido não passava de meia dúzia de slides vagos e jargões tecnocráticos. Além disso, embora seja necessário planejar o cenário pós-pandemia, há medidas mais urgentes a tomar para amparar cidadãos, empresas, estados e municípios.

Dada a tradição estatista e gastadora das Forças Armadas, surgiram temores justificados de que se buscava uma brecha permanente nas normas de contenção da despesa pública, ora correta e temporariamente relaxadas para o enfrentamento da calamidade.

Intenções do gênero foram negadas por Braga Netto, mas a ausência de nomes da equipe de Guedes na entrevista acirrou as incertezas. O presidente, afinal, já havia demitido o titular da Saúde e logo faria o mesmo com o da Justiça.

Uma vez prestigiado, o ministro da Economia tratou de reafirmar sua agenda de reformas liberais e ajuste das finanças públicas. No que diz respeito ao longo prazo, ele está correto: o Estado brasileiro sairá ainda mais deficitário e endividado desta crise, o que torna ilusório a esta altura imaginar programas grandiosos de obras.

Entretanto sua pasta deixa a desejar, sim, na liderança das políticas imediatas para a mitigação dos efeitos da recessão que se inicia sobre o emprego e a renda das famílias. Esse vazio logo se viu ocupado pelo Congresso Nacional e, em parte, pelo Banco Central —além, claro, de atrair os militares.

• STF barra nomeação na PF e impõe novo revés a Bolsonaro – Editorial | Valor Econômico

O novo ministro da Justiça, André Mendonça, entra com suspeitas de que será anteparo de Bolsonaro e com déficit de independência

O presidente Jair Bolsonaro fracassou em mais uma tentativa de esculhambar as instituições da República em proveito próprio. Bolsonaro não mediu consequências políticas nem seu preço para buscar controlar a Polícia Federal, que investiga casos em que seus filhos estão envolvidos, em sua maior investida contra os instrumentos de controle estabelecidos pela Constituição. O presidente teve de voltar atrás depois que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, aceitou mandato de segurança do PDT e impediu a posse, por desvio de finalidade, daquele que seria o novo diretor-geral da PF, Alexandre Ramagem, amigo da família, marcada para a tarde de ontem. Bolsonaro desistiu da indicação.

Moraes, que também é responsável pelo inquérito sobre fake news, cujas apurações se aproximam de Carlos Bolsonaro, mencionou as declarações do ex-ministro Sergio Moro, de que o presidente da República buscou a troca no comando da PF para interferir politicamente na instituição e colher informações. O ministro do STF não precisou nem dar o benefício da dúvida às alegações de Moro. Elas foram confirmadas, segundo Moraes, pelo próprio presidente, em entrevista no mesmo dia, em que manifesta a necessidade de “ter todo dia ter um relatório do que aconteceu”.

Moraes barrou a indicação e indicou que não pretendia submeter sua decisão ao plenário do Supremo, o que sepultou as intenções de Bolsonaro. “Não é papel da Polícia Federal atuar como órgão de inteligência da Presidência da República”, anotou Moraes. Com a PF nas mãos, o presidente poderia não só influir sobre investigações que lhe digam respeito, ou a seus filhos, como também desencadear operações de perseguição política, tão ao gosto de personalidades autoritárias.

Os episódios do afastamento de Moro, o ministro mais bem avaliado de seu governo e um dos heróis dos bolsonaristas, revelaram que o presidente se sente dono da República, junto com sua família, e que acha que pode fazer o que bem entender. Em sua delirante entrevista para rebater Moro, Bolsonaro falou de tudo, menos do motivo para a troca do comando da PF. Por descaso à inteligência alheia, ou supervalorização da própria, deu até a entender que fez um ato de benemerência. Maurício Valeixo, então no comando da PF, já se declarara cansado e com vontade de sair do posto e ele se dispôs a atendê-lo.

Moro cedeu até onde julgou possível e abriu a opção de um novo diretor-geral, a ser por ele indicado, abrindo um alçapão para o presidente que, claro, não concordou, pois queria nomear quem quisesse e a urgência de fazê-lo, alegando inclusive o inquérito no STF sobre manifestações antidemocráticas da qual Bolsonaro participara. Depois saiu bufando dizendo que se o presidente não pode escolher o diretor-geral da PF, então que poder tinha? Tem o poder que lhe é dado, e circunscrito, pela Constituição.

Com Moro fora do caminho, Bolsonaro estava inclinado a deixar explícito o que pretendia: escolher o secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira, amigo de longa data da família e que trabalhou no gabinete de Eduardo Bolsonaro, para ministro da Justiça, que faria dobradinha com outro amigo, Ramagem, indicado para a Abin por Carlos Bolsonaro. Com este script e personagens, o presidente ampliaria seu poder e inscreveria o Brasil no rol de Repúblicas bananeiras.

O presidente não sofreu uma derrota completa em seus intentos. O novo ministro da Justiça, André Mendonça, entra com suspeitas de que será anteparo de Bolsonaro e com déficit de independência. É um dos poucos a ocupar a pasta sem poder escolher o diretor-geral da PF, além de ser cotado, pelo presidente, em público, para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Mendonça é avaliado por círculos fora do Planalto como competente e tem boa interlocução no STF, um atributo essencial no atual momento.

Como advogado do governo na AGU, Mendonça seguiu o protocolo, ateve-se à “presunção de veracidade” e cumpriu sua tarefa, defendendo a versão oficial dos fatos. A AGU disse que o presidente cumpre as determinações da OMS e do Ministério da Saúde na pandemia, quando Bolsonaro passeia todo pimpão em aglomerações e prega a volta ao trabalho desde o início.

Bolsonaro, porém, não desiste. Cobrou ações de Moro em seu favor, apoio e é certo que fará o mesmo com o sucessor. Mendonça tem cumprido bem e com afinco suas missões, resta ver qual será ela agora.

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