sexta-feira, 3 de abril de 2020

Rogério L. Furquim Werneck* - Não é hora de brincar com a sorte

- O Estado de S. Paulo / O Globo

É alarmante a desarticulação com que o governo federal vem preparando o País para o impacto da crise

Prestes a ser colhido em cheio por uma pandemia devastadora, com desdobramentos econômicos e sociais de proporções dramáticas, o País assiste, perplexo, ao desenrolar, no Planalto, de uma extemporânea e deprimente ópera-bufa que a cada dois dias volta a alimentar o temor de que, a qualquer momento, o ministro da Saúde venha a ser demitido pelo presidente da República. Por duas falhas imperdoáveis: ter insistido numa linha clara e bem fundamentada de combate à epidemia e, pior, ter mostrado mais sucesso do que deveria no desempenho do cargo.

Essa é só uma das evidências mais gritantes da alarmante desarticulação com que o governo federal vem preparando o País para o impacto da crise. Em contraste com países que enfrentam a pandemia em formação cerrada, entre nós a cúpula do governo ainda não conseguiu se mobilizar para levar adiante uma ação nacional concertada de resposta à crise.

Diante da complexidade do que terá de ser enfrentado, as graves limitações do presidente já não podem mais ser disfarçadas. Têm sido escancaradas, a cada dia, à luz do sol. Já não há mais espaço para autoengano. Permito-me reproduzir a seguir o que afirmei sobre Bolsonaro quando pela primeira vez o mencionei em artigo aqui, cinco meses e meio antes das eleições, em 20/4/2018: “A verdade verdadeira é que Bolsonaro, tomado pelo que de fato é, e não por fantasias do que poderia vir a ser, não tem nem estatura nem preparo para ser presidente”. E, tendo dito isso, concluí o artigo com uma frase que se revelou tristemente premonitória: “A esta altura, em meio ao atoleiro em que foi metido, o País já deveria ter aprendido, de uma vez por todas, quão desastroso pode ser entregar a Presidência da República a uma pessoa patentemente despreparada para o exercício do cargo”.

Mas, no calor da dura batalha que já vem sendo travada, pouco adianta chorar sobre o leite derramado. A questão agora é saber se, apesar da acefalia de que está acometida a Presidência da República, a crise ainda poderá ser enfrentada de forma minimamente eficaz.

Há quem se anime com a fantástica metamorfose que se observou na Casa Branca nos últimos dias. Bastaram as primeiras informações assustadoras sobre o avanço devastador da pandemia em Nova York para que Donald Trump se desvencilhasse de seu discurso inconsequente e populista e, da noite para o dia, se transformasse em comandante em chefe das forças que darão combate sem tréguas ao coronavírus nos EUA.

Mas é bom ter em conta que, por primitivo que possa parecer, Trump está muito à frente de Bolsonaro na cadeia evolutiva dos animais políticos. E, por mais fixado em Trump que continue a ser, o presidente pode levar mais tempo do que se imagina para mudar sua postura no combate à pandemia.

Enquanto isso, o País não tem melhor alternativa do que se mobilizar para manter e reforçar a precária rede de racionalidade que, a duras penas, ainda vem dando sustentação à articulação de uma resposta consequente à crise na esfera federal. Uma rede que vem tendo como esteios ministros de maior estatura, lideranças do Congresso, ministros do Supremo, governadores, prefeitos de capitais e parte substancial da sociedade civil, liderada pela mídia.

Nesse esforço para manter o presidente sob controle, é importante não confundir seus recuos tácitos com mudanças permanentes e convictas de postura. Basta ter em mente a longa lista de seus ministros e auxiliares que, ao longo dos últimos 16 meses, foram submetidos a processos de fritura. Em quase todos os casos, a demissão foi precedida de lento desgaste, marcado por recuos recorrentes do presidente, que, a cada vez, pareciam sugerir que as razões para demissão haviam desaparecido.

Há muito em jogo. Não é hora de brincar com a sorte. É preciso que Bolsonaro entenda a gravidade da situação e perceba com toda clareza que, se continuar conspirando contra a articulação de uma resposta racional à crise, estará fadado a ser confrontado com um processo de impeachment.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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