quarta-feira, 1 de abril de 2020

Tiago Cavalcanti* - Desafios de uma pandemia

- Valor Econômico

O que falta é uma estratégia clara da Presidência da República. A ausência de ações é a pior política

A revista americana Wired lançou em 2002 um programa de apostas de longo prazo (“long bets”) entre influentes cientistas. A ideia dessas apostas era tentar prever futuros avanços na ciência, tecnologia e mudanças na humanidade que poderiam ocorrer nas décadas seguintes.

O astrônomo Martin Rees, fundador do Centro de Riscos Existenciais da Humanidade da Universidade de Cambridge, apostou que, entre 2002 e 2020, uma pandemia, causada por bio-terror ou não, levaria à morte milhares de pessoas. Não há dúvidas que Martin Rees, humanista, preferiria perder essa aposta. Contudo, o mundo cada vez mais interconectado facilita o contágio global de algum vírus que o ser humano ainda não tem imunidade.

O planeta inteiro está em estado de pânico pela pandemia chamada de Coronavírus ou covid-19. Até o dia de hoje, já há registros de mais de 800 mil casos de coronavírus em 200 países. O número de infectados é bem superior já que a maioria das pessoas não é testada. O número de mortes está acima de 40 mil pessoas.

Apesar da atual pandemia ser a crise de saúde e (talvez a) econômica mais importante da geração que nasceu após a Segunda Guerra Mundial, é importante lembrar que a história humana tem sido marcada por ciclos de epidemias. Em geral, são ataques naturais que atingem todos os espaços geográficos e setores da sociedade. No entanto, cientistas cada vez mais tem alertado para um possível terror biológico.

Há registros de epidemias com potencial de dizimar uma fração importante da população desde o declínio do período Neolítico, por volta de 3000 AC. Como, por exemplo, a “Praga de Atenas” entre 430 e 426 AC, quando 30% da população ateniense pereceu por um surto de varíola; ou a “Praga de Cipriano”, epidemia de sarampo e varíola, entre os anos 249 e 262 da era Cristã, que devastou o Império Romano.

A maior pandemia vivida até hoje, conhecida como a “Grande Praga Bubônica”, aconteceu entre os anos 1346 e 1353. Essa pandemia causou o mais elevado número de mortes na história, estimando-se a perda de 75 a 200 milhões de pessoas na Eurásia e norte da África. A Europa foi devastada com a morte de 1/3 de sua população, atingindo todas as camadas sociais, causando profundas mudanças políticas, econômicas e culturais.

O clássico “Decamerão”, de Giovanni Boccaccio foi escrito durante a “Grande Praga Bubônica”, e é estruturado em contos trágicos e de amor contados por sete jovens mulheres e três rapazes, que se isolaram em uma vila perto de Florença para se protegerem dessa praga. A descrição de como a praga se espalhava pelas cidades e o desespero das pessoas são atuais: “ esta pestilência, lançada sobre os mortais por justa ira de Deus e para nossa expiação, começara nas plagas orientais Sem tréguas de um lugar a outro; e expandira-se miseravelmente para o Ocidente Esta peste foi de grande violência; porque ela se lançava contra os sãos, partindo dos enfermos, desde que enfermos e sãos ficassem juntos de os parentes, juntos, raras as vezes, ou nunca, se visitarem, e, quando se visitavam, ainda assim só o fazerem de longe”.

Uma outra pandemia de impacto global foi a “Gripe Espanhola” de 1918. Causada pelo vírus da influenza H1N1, essa pandemia infectou cerca de 25% da população mundial da época e matou aproximadamente 50 milhões de pessoas. Ao contrário do covid-19, a gripe espanhola matou principalmente adultos jovens menores de 65 anos.

Apesar da letalidade da covid-19 não ser elevada em comparação com outros vírus, o rápido contágio pode causar o colapso do sistema de saúde, elevando o número de fatalidades. Os relatos de médicos escolhendo pacientes que serão tratados e pessoas sucumbindo e sendo sepultadas sozinhas em sociedades com fortes laços familiares, como na Itália, geram profunda aflição e tristeza.

Atualmente a maioria dos países está adotando políticas de isolamento social, fechamento de colégios, universidades e proibição de eventos com aglomeração. Tais medidas, além de preservarem vidas, tendem a diminuir o contágio e reduzir o fluxo de pessoas indo para os hospitais.

Sem a vacina, em um ambiente com baixos custos de transação e onde testes em massa são factíveis, a política ótima é testar, rastrear as pessoas e isolar os indivíduos com o vírus, assim como aqueles que foram expostos aos enfermos da covid-19. Assim, o lockdown, que coloca diversos custos na nossa sociedade, não seria necessário. A alternativa ao lockdown requer forte capacidade de coordenação do Estado em conjunto com tecnologias de geolocalização, como a desenvolvida pela empresa Pernambucana In Loco.

No entanto, não estamos nesse ambiente. Um lockdown temporário para achatar a curva de transmissão da covid-19 é necessário. Depois de elaborado um plano com base em testes em massa, monitoramento e isolamento direcionado, então o lockdown pode ser gradualmente relaxado. Emanuel Ornelas, professor titular da FGV-SP, explica bem os argumentos em artigo publicado no VoxEU. Entendo que o caso do Brasil não é trivial dada a situação das pessoas nas comunidades mais pobres, o que demanda um Estado ainda mais ativo. Mas até termos uma ideia clara da propagação do vírus no país, a ausência de um lockdown temporário é negligenciar a possível morte de elevado número de pessoas.

No lado econômico, a maioria dos governos entendeu que a queda na atividade econômica, com ou sem lockdown, será brutal e a situação é extraordinária. Uma recessão profunda e duradoura pode ter efeitos de longo prazo via mudanças nas expectativas, queda no preço dos ativos, falência de empresas, queda na taxa de participação da força de trabalho e diversos custos de ajuste. O desemprego em massa de pessoas vulneráveis pode gerar uma convulsão social e aumento da pobreza. Um plano econômico de ajuda às empresas, que em contrapartida deveriam manter uma fração significativa do emprego, é vital. Além de ajuda aos autônomos e a todos abaixo da linha de pobreza.

O Congresso aprovou um programa nessa linha, incluindo auxílio aos trabalhadores informais. A comunicação do ministro Paulo Guedes foi muito boa. O que falta são ações integradas e uma estratégia clara da Presidência da República integrando todos os ministérios ao lado dos Estados e Municípios para conter a propagação dessa pandemia no país. A ausência de ações nessa área é a pior política.

*Tiago Cavalcanti é professor de Economia da Universidade de Cambridge e da FGV-SP

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