domingo, 17 de maio de 2020

Dorrit Harazim - E se...?

- O Globo

Caso Bolsonaro fizesse uma live defendendo o isolamento social, o índice de contaminação cairia para quanto?

‘Foi o derradeiro comando, o mais essencial”, escreveu George Orwell no clássico distópico “1984”, referindo-se à ordem da fictícia Oceania para que seus súditos rejeitassem tudo o que os olhos vissem e os ouvidos escutassem à margem da linha oficial. Donald Trump volta e meia adapta a citação quando aponta para o inimigo que adoraria domesticar: a imprensa independente. “Lembrem-se, o que vocês estão vendo e o que vocês estão lendo não é o que está acontecendo”, avisa sempre. No Brasil de Jair Bolsonaro o que se vê, ouve ou lê é bastante parecido com o que acontece intestinamente no governo manicomial eleito em 2018. Um assombro diário. E é o jornalismo arretado, investigativo, que nos permite ver e escutar. Já a tarefa de pensar fica a cargo de cada um.

Basta misturar alguns fatos da semana para constatar que eles mereceriam manter rigoroso distanciamento entre si. No Brasil que beira 15 mil mortes de Covid-19, o participante de uma reunião virtual de empresários com o chefe da nação se esqueceu de desativar a função “vídeo” e apareceu meio peladão na tela tornada pública. Debatiam-se os rumos da economia nacional. O país ultrapassa a barreira de 200 mil casos confirmados do vírus, o SUS pede socorro, erguem-se hospitais de campanha desossados e fraudados, aos moribundos resta esperar morrer fora da curva. Cinco meses após o primeiro caso da doença na China, Bolsonaro ainda se atrapalha com o uso de máscara e mistura “lockout” e “blecaute” com “lockdown” — talvez por horror ao real significado do termo. 

Mas trocou de ministro da Saúde pela segunda vez em um mês, e comanda o país de 211 milhões de almas sem diretriz clara de enfrentamento da crise tríplice sanitária, política e econômica. A execução do pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 virou cipoal de armadilhas para os mais necessitados, e a realização do próximo Enem também promete ser. Jair Bolsonaro, pseudônimo Airton, Rafael ou Paciente 05 nos testes negativos de Covid-19 que apresentou dias atrás, libera academias de ginástica, salões de beleza e barbearias como sendo serviços essenciais. Não fosse tudo tão sério, o conjunto daria um roteiro e tanto para o diretor Cacá Diegues filmar um “Bye Bye Brasil 2020”.

Se em tempos excepcionais é desejável que o mundo tenha líderes de qualidades adequadas, em tempos de crise pandêmica é mais crucial ainda. É quando a diferença entre exercer ou não uma liderança sólida vai definir o cociente de vidas salvas ou mortes desnecessárias. Estatísticos e formuladores de métricas da Covid-19 poderiam trabalhar com uma variável hipotética: e se Jair Bolsonaro fizesse uma live proclamando que doravante, para o bem da amada pátria e em nome de Deus, todos deveriam aderir ao distanciamento social — se necessário até mesmo a um isolamento temporário? Considerando-se a fidelidade já demonstrada pelos milhões de apoiadores do presidente-mito, é provável que uma boa parcela o seguiria de casa e bíblia na mão.

Nessa hipótese, como seria a mudança de comportamento da curva do vírus no Brasil? O índice de contaminação diminuiria para quanto? E a mortandade? Poderíamos regredir quantas casas no sombrio ranking global? Dá para calcular o efeito de mais leitos de CTI e respiradores com tempo de se tornarem operacionais. Talvez deixássemos de ser o país-pária da atualidade, e fronteiras se entreabririam para o Brasil quando o mundo retomasse sua rotina. A gritante subnotificação de óbitos e contaminados do país teria mais chances de ser computada e aperfeiçoar as políticas sanitárias?

O exercício de métrica serve apenas para jogar o foco no tamanho da (ir)responsabilidade do ocupante do cargo.

Liderança é uma questão de fatos, não de opinião, e nem todo chefe de nação nasce estadista. As dificuldades se agravam quando o governante tem consciência íntima de estar aquém do exigido para conduzir um país em crise. No caso da Covid-19, deve ser irreprimível a tentação de acenar com a falsa promessa de uma vacina iminente ou uma droga capaz de inverter o quadro. A aposta presidencial no uso da cloroquina deve ter essa raiz.

Já disponível para outras enfermidades como malária mas ainda não liberada para tratar o coronavírus em sua fase inicial, a poção mágica abraçada por Bolsonaro torna-se, agora, política oficial para pacientes do SUS. Os dois ministros da Saúde defenestrados, ambos médicos, se opunham à medida devido a seus possíveis efeitos colaterais. “Votaram em mim para eu decidir e esta questão passa por mim”, decidiu o presidente.

Nos Estados Unidos, onde o número de óbitos se aproxima dos 100 mil, o Instituto de Alergias e Doenças Infecciosas deu início a um teste clínico da droga em 2.000 adultos. Até a conclusão do estudo, nem Donald Trump, outro fervoroso adepto da droga, terá vez. O terceiro promotor ativo da cloroquina é o venezuelano Nicolás Maduro, formando um improvável eixo de líderes errados para tempos de pandemia.

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