terça-feira, 5 de maio de 2020

FHC teme ‘paredão’ e alerta para risco de autoritarismo

Ex-presidente diz que Forças Armadas não estão preparando um golpe, mas podem ser levadas a preparar

Por Cristiane Agostine e Ana Conceição – Valor Econômico


SÃO PAULO - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse ter a sensação de que o Brasil enfrente em breve cenário “muito desagradável” e o risco de um projeto autoritário. A um mês e meio de completar 89 anos, ele teme enfrentar um novo “paredão”, referência à ditadura militar, que governou o país de 1964 a 1985, e criticou o presidente Jair Bolsonaro por não ter projeto de governo, mas, “ímpeto” para o autoritarismo.

Ao debater o cenário político, social e econômico com o sociólogo e professor emérito da USP José de Souza Martins, em “live” promovida ontem pelo Valor, FHC disse que falta comando no paí. Para ele, as Forças Armadas não estão preparando um golpe. “[Mas] podem ser levadas a [isso].”

O ex-presidente disse que a democracia brasileira vive uma crise e demonstrou receio em relação ao que pode acontecer nos próximos meses. “Tenho a sensação de que podem me ocorrer coisas desagradáveis. Coisas muito desagradáveis vão começar. No ano que vem faço 90 anos. É muita idade. A esta altura, ter que encontrar um paredão outra vez... É duro”, disse FHC. “A verdade é que vai ser difícil.”

Ao falar sobre os riscos de o país enfrentar uma nova ruptura institucional, o ex-presidente ponderou que o contexto político atual é diferente do vivido pelo país em 1964, quando houve o golpe militar, mas disse que é preciso cuidado.

“Em 1964, quando houve ruptura, havia um projeto que foi desenvolvido aos poucos contra a desordem simbolizada pelo pobre do Jango [João Goulart], e havia uma realidade. Havia Cuba, URSS etc. Hoje não há propriamente um projeto de autoritarismo. Ele pode acontecer. É pior, talvez, porque não tem projeto. Mas pode acontecer”, disse FHC. “Há o impulso, o ímpeto de pessoas, inclusive do presidente. É grave.”

Na avaliação de Fernando Henrique, o autoritarismo enfrenta a resistência das instituições, como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), que “atua politicamente”, mas “daqui a pouco vão querer que os militares falem”.

O ex-presidente observou que as Forças Armadas não podem estar com ideia de que, sozinhas, “vão mandar”, mas disse que os militares não serão omissos diante de uma grave crise. “A anomia [desordem, no conceito sociológico] não pode durar muito tempo. Chega o momento em que alguém quer colocar ordem. Os militares suportam, suportam, até que não tenha solução”, assinalou. “Se a coisa não funcionar, vai fazer o quê? E não é só o Exército. E as polícias que estão por aí?”

Durante a “live”, o ex-presidente disse ter a “sensação” de que quem comanda o país “não tem noção da realidade” e criticou o tempo gasto por Bolsonaro com brigas com as instituições. “Estamos com uma crise de liderança”, reforçou. “Além da pandemia e da recessão, temos falta de comando. É o que menos ajuda para sair da crise.”

“Estamos em uma espécie de vazio muito perigoso porque quem falar duro pode ganhar. Porque a sociedade está com medo e com medo pode levar para qualquer lado. Por enquanto, ninguém está falando com a rigidez que é possível. Se falar, pobre de nós”, disse FHC.

FHC não descartou a possibilidade de Bolsonaro ser afastado do cargo, e disse que quem defende a democracia deve se opor ao que está acontecendo no país. “É ruim para a democracia mais um impeachment, mas acontece.”

O ex-presidente evitou reforçar o coro pelo afastamento, mas disse que a oposição ao presidente deve “tomar cuidado ao se opor” para não agravar a crise política. “O momento não é para acirrar, é para jogar água na fervura”, recomendou. “É o momento de conversar uns com os outros, evitar uma ação da qual não se volta.”

A pandemia, advertiu o ex-presidente, está mostrando que “ideias muito ortodoxas” na economia não são “viáveis” e que “só investir, aumentar a produtividade” não funciona. “Estado tem que ser competente. Não é grande nem pequeno”, comentou.

O sociólogo José de Souza Martins também criticou a atuação de Bolsonaro e disse que o “presidente está tentando fazer marola para que as águas fiquem turvas”. “Ele não sabe onde quer chegar. Não sabe o que é o poder. Ele pensa que o poder é ele. Não é. O poder é muito relativo. Há muito poder na Presidência da República. Mas, para ter poder, precisa ter competência e isso ele não tem demonstrado”, afirmou Martins, criticando alguns ministros do atual governo como “deploráveis”.

Professor emérito da USP, Martins afirmou que o viés autoritário de Bolsonaro tem encontrado respaldo nas ruas e que isso pode gerar onda de violência. “Muita gente na rua tem demonstrado certa predileção pela ideia de um presidente autoritário que manda em todo o mundo. Isso não é bom”, disse. “O Brasil é o país que mais lincha no mundo. O número de linchamentos aumentou de dois anos para cá”, afirmou, citando agressão a jornalistas provocada por apoiadores do presidente, no domingo. “O que aconteceu lá pode virar um linchamento. Se a coisa for por aí, irá porque o presidente ou provocou ou se omite. É para deixar a gente muito preocupado.”

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