sábado, 9 de maio de 2020

Jeffrey Sachs* - Como evitar um desastre financeiro global

- Valor Econômico

Os credores parecem não entender que, se a taxa do cupom da Argentina for reduzida para perto da dos EUA, um calote não será necessário. A taxa altíssima de 7% é profecia autorrealizável: ela torna a inadimplência inevitável, enquanto uma taxa de juro mais baixa a tornaria desnecessária

Quando um único carro derrapa em uma estrada coberta de gelo, o resultado pode ser um acidente que envolva 50 carros. O mesmo acontece com os mercados financeiros internacionais: a moratória do México em 1982 levou a um “engavetamento” de dezenas de países.

A desvalorização da moeda da Tailândia em julho de 1997 desencadeou a crise financeira asiática. A falência do Lehman Brothers em setembro de 2008 deflagrou a Grande Recessão em todo o mundo.

Os financistas internacionais já têm experiência suficiente para saber que não devem iniciar a crise da covid-19 em 2020. Seu bom senso será testado em breve.

Mesmo antes que a covid-19 jogasse a economia mundial na pior crise desde a Grande Depressão, a Argentina estava sobre-endividada, de novo. Como já aconteceu tantas vezes na história cheia de calotes da Argentina, um acordo insuficiente com credores recalcitrantes em 2016, seguido de um rápido retorno ao mercado de bônus, revelou-se apenas uma esperança ilusória, tanto para o então presidente da Argentina quanto para os credores do país.

Os déficits fiscais abalaram sua estabilidade. Um programa de resgate do Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2018 não funcionou. E as dívidas da Argentina, com taxas de cupons muito altas, se provaram insustentáveis.

Mas a Argentina dificilmente está sozinha. À medida que normas relaxadas de concessão de empréstimos pelos mercados financeiros e a ampla liquidez produzida pelo Fed e outros bancos centrais levaram muitos países em desenvolvimento a tomarem crédito pesadamente nos últimos anos, o super-endividamento da dívida soberana passou a ser reconhecido cada vez mais como um grande risco sistêmico. Uma sessão das Reuniões da Primavera do FMI em 2019 foi intitulada “Enfrentando a Próxima Onda de Crises da Dívida Soberana”.

Entra em cena a covid-19. O desabamento dos preços do petróleo em março, o início de uma quarentena quase mundial, receitas governamentais em queda livre e gastos públicos gigantescos para a sobrevivência das populações produziram uma crise fiscal mundial inigualável em tempos de paz. O déficit orçamentário dos Estados Unidos vai disparar para cerca de 18% do Produto Interno Bruto (PIB) ou mais. Para dezenas de economias emergentes, o panorama financeiro não poderia ser mais sombrio.

Contudo, mesmo nesse contexto a Argentina fez uma proposta de reestruturação da dívida para seus credores que é realista e favorável. Seus credores deveriam responder positivamente. Vejamos como isso funciona.

A dívida atual da Argentina tem uma taxa de cupom média de 7%, que é cerca de sete pontos percentuais mais alta do que a taxa zero de cupom paga pela Alemanha em seus bônus de governo de 30 anos e seis pontos mais alta que a taxa de cupom de 1,2% paga pelo Tesouro dos EUA. A Argentina observou, com razão, que a taxa de cupom de 7% levaria necessariamente ao calote. O FMI concordou que ela é insustentavelmente alta. Poucos governos - nem mesmo o dos EUA - conseguiriam pagar o serviço de uma dívida com cupom de 7% neste ambiente econômico.

Os credores da Argentina dizem que precisam de um cupom de 7%, ou com taxa até mais alta, por causa da probabilidade de inadimplência. Mas eles parecem não entender que, se a taxa do cupom da Argentina for reduzida para perto da dos EUA, um calote não será necessário. A taxa elevadíssima de 7% é uma profecia autorrealizável: ela torna a inadimplência inevitável, enquanto uma taxa de juro mais baixa a tornaria desnecessária.

A Argentina se ofereceu para refinanciar a dívida atual a taxas de juro baixas e seguras e, assim, evitar a necessidade de impor um “haircut” sobre o principal. (Na verdade, para se adequar à lei argentina, a proposta de troca inclui uma pequena redução simbólica do valor nominal da dívida que, na minha opinião, deve ser eliminada em qualquer acordo final). Como no caso de um refinanciamento imobiliário residencial, os bônus existentes seriam substituídos por bônus que refletissem as baixas taxas de juro atuais. Mas, em vez de uma taxa de cupom igual à da do Tesouro dos EUA, a Argentina oferece uma taxa de cupom média de 2,3%, superior às taxas de retorno dos títulos do Tesouro americano nas carteiras de seus credores.

Há detalhes sobre períodos de carência e prazos dos pagamentos de cupons que ainda devem ser negociados, aperfeiçoados e finalizados à luz das sombrias realidades econômicas.

Mas os credores são um grupo estranho. Eles alegam que a Argentina quer impor um “haircut” significativo, embora essencialmente não exista nenhum. O governo da Argentina oferece um retorno seguro que é superior à taxa de juro segura dos EUA, e a lógica de sua oferta está correta. Por que ele deveria continuar com uma taxa de juro altíssima que justamente provoca o risco de calote em que essa taxa é baseada? E por que os credores devem preferir um calote a uma recuperação econômica?

Os credores calculam o suposto corte na proposta da Argentina com base em uma taxa de desconto de 10% a 12%, como se merecessem uma taxa de risco de 10% ou superior, quando a taxa dos bônus do Tesouro dos EUA é pouco superior a 1%. O jornalismo financeiro acompanha essa linha, ao informar que a Argentina quer impor um corte profundo aos credores quando não está fazendo nada disso. Ela propõe reduzir uma taxa de cupom propensa ao calote para uma taxa de cupom livre de calote.

Eu iria um pouco mais longe. Alguns credores oficiais amigáveis ou instituições multilaterais poderiam tornar o acordo mais interessante ao garantir alguns ou todos os pagamentos da Argentina sobre os novos bônus. Essa garantia seria uma aposta totalmente segura: com a baixa taxa dos cupons e a nova estrutura de vencimentos, a Argentina não daria um calote.

Os mercados financeiros mundiais tendem a entrar em pânico quando um país - que dirá vários - começa a derrapar. Hoje provavelmente existem 30 a 40 países com dificuldades fiscais. Todos precisam refinanciar suas dívidas, até que a recuperação da pandemia reavive a atividade econômica mundial, restaure as receitas dos governos e reduza a necessidade de gastos emergenciais.

Em tais situações, a racionalidade nos mercados financeiros exige a orientação do FMI e a liderança de credores importantes. Caso contrário, o que ocorre é uma corrida em que cada credor tenta garantir o seu lado.

Se tratados com cuidado, os pagamentos do serviço da dívida deste ano podem e devem ser recapitalizados a baixas taxas de juro para evitar um “engavetamento” financeiro. Se não, 2020 marcará um novo e devastador episódio de crise financeira mundial.

No Pânico de 1907, foi J. Pierpont Morgan e seu banco que conduziram o sistema financeiro para longe da beira do abismo. Em 2020, deve ser a BlackRock, que possuía US$ 6,5 trilhões em ativos sob sua gestão no fim do primeiro trimestre e é uma das principais credoras da Argentina. A BlackRock poderia orientar os detentores de títulos a refinanciar a dívida da Argentina a uma taxa de cupom segura, e fazer o mesmo com outros tomadores de crédito soberanos em dificuldades.

Agora é com você, Larry Fink. É sua vez de ajudar a evitar uma catástrofe financeira mundial. (Tradução de Lilian Carmona)

*Jeffrey D. Sachs é professor de Desenvolvimento Sustentável, de Política e Gestão de Saúde e diretor do Instituto da Terra da Universidade de Columbia. Dirige a Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU.

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