domingo, 31 de maio de 2020

José Murilo de Carvalho* - Tutela militar

- O Globo

Hoje, a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel

As Constituições determinam o papel dos atores políticos. Vejamos como as nossas definiram o das Forças Armadas.

1824: sem papel político e policial.

Art. 47: “A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir, sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima”.

Art. 48: “Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar e Terra, como bem lhe parecer conveniente à segurança e defesa do Império”.

1891: com papel político e policial.

Art. 14: “As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da pátria no exterior e à manutenção das leis no interior. A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos, e obrigada a sustentar as instituições constitucionais”.

1934: com papel político e policial.

Art. 162: como em 1891. Acrescenta nas atribuições: “defesa da ordem e da lei”.

1937: sem papel político e policial.

Art. 161: “As forças armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina e da fiel obediência à autoridade do presidente da República”.

1946: papel político e policial.

Art. 176: “As FA [...] são instituições nacionais permanentes [...] sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei”.

Art. 177: “Destinam-se as FA a defender a pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”.

1967: papel político e policial.
Art. 92: repete 1946, trocando “poderes constitucionais” por “poderes constituídos”.

1988: papel político e policial.

Art. 142: “[como em 1946] organizadas [...] sob a autoridade suprema do PR, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Foi longo e difícil o debate sobre este artigo, feito sob forte pressão do ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. Mas a disputa deu-se em torno da expressão “garantia da lei e da ordem”. Segundo os críticos, ela podia dar margem a golpismo. Este dispositivo, no entanto, estava presente, com pequenas nuanças de redação, desde a Constituição de 1891, passando pelas de 1934, 1946 e 1967. 

Hoje, creio que a atribuição mais grave é colocar as Forças Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais, presente desde 1891. Houve uma reviravolta na interpretação desse papel. Em 1891, ironicamente, a Constituição proibia o que o Exército acabara de fazer: desrespeitar as instituições constitucionais. Mesmo assim, deixou uma saída intervencionista ao acrescentar “dentro dos limites da lei”. Juarez Távora não viu na limitação qualquer obstáculo à revolta dos tenentes: eles sabiam definir o que era ou não legal.

Hoje, a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel e justificar sua intervenção. A mais recente manifestação desta postura foi o alerta ameaçador do general Augusto Heleno a propósito de eventual apreensão do celular do presidente. A apreensão, se levada a efeito, seria uma tentativa de “comprometer a harmonia entre os poderes”, com “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Um dispositivo que, inicialmente, visava a impedir intervenção, passou a ser justificativa de intervenção. A Constituição imperial dizia no artigo 98: “O Poder Moderador [...] é delegado privativamente ao Imperador [...] para que vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”. Temos uma República julgada incapaz de se autogovernar, sujeita à tutela de um novo Poder Moderador.

*José Murilo de Cavalho é historiador

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