quinta-feira, 21 de maio de 2020

Míriam Leitão - A dor coletiva e o desamparo

- O Globo

Visitar os que sofrem em uma tragédia não é um ato simbólico, é parte de bem governar. Bolsonaro negou ao país esse gesto

Um chefe de Estado demonstra sentimento quando o seu povo sofre, vai aos locais onde a tragédia acontece, conversa com atingidos e os conforta. Um governante mantém uma atitude de seriedade quando o país é alvejado por alguma catástrofe. Tem palavras de encorajamento para os que estão na frente da batalha socorrendo os enfermos. O que parece ser apenas protocolo faz parte do conjunto de obrigações da pessoa pública. Isso não resolve o problema, mas impacta muito mais do que se imagina a tomada de decisões. Só tem chance de acertar o líder que entende a dimensão da dor coletiva.

A comunicação de quem governa não pode ser tocada por um miliciano digital. Tem que ter sobriedade e propósito. Não pode ser uma corrida por likes e lacrações. É a expressão do próprio Estado e por isso tem que ser dirigida por pessoas que evitem os ruídos e as agressões, as omissões e os conflitos. Mas nada substitui a palavra do líder, se ela for sincera e tiver relação com os atos praticados.

Ir até o local onde se sofre é a norma de conduta mais elementar que um governante tem que seguir. Não estar presente simboliza desprezo pelos governados. Normalmente, os que visitam o povo em seu sofrimento entendem a urgência da tomada de decisão. A pessoa pública conseguirá dialogar apenas com alguns e ver somente uma fração do que acontece, mas algumas histórias costumam falar por muitas e por isso, ao sair do seu casulo, onde os áulicos lhe dizem que está tudo certo, o governante precisará ter ouvidos para ouvir e aproveitar a chance de ver com os próprios olhos.

O Brasil se acostumou à dor sem consolo. Aceita que o presidente faça piada quando a pandemia mata mais de mil pessoas num mesmo dia. Na piada rimada do presidente — quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína — não há apenas mau gosto. Há perversidade. Na terça-feira em que ele fez a blague houve 1.179 mortes por coronavírus no país. Bolsonaro parece querer exibir a indiferença, como se tivesse orgulho dela.

De vez em quando alguém tenta entender o tamanho do acontecido calculando quanto as mortes representariam em quedas de avião — e vários aviões caem diariamente no Brasil— ou usando métricas de outros desastres, para ter uma dimensão da realidade. Isso é importante para que não se fique anestesiado diante da repetição diária dos eventos. Há gente atrás de cada número, como nos lembra o projeto “Inumeráveis”.

São inumeráveis as dores que atingem as famílias, inumeráveis as aflições de quem teme ser o próximo ou que o mal ameace as pessoas queridas. Inumeráveis as noites mal dormidas no Brasil nestes meses difíceis. Inumeráveis as horas de angústia de quem luta por um leito em hospital. Contudo, seguimos usando números para contar as vítimas de cada dia, e assim dimensionar o sofrimento do país. Cada pessoa é única para os seus. E depois que o registro da perda deixar de ser notícia, a família atingida passará anos carregando as cicatrizes.

O ser humano foi dotado da virtude da empatia. Isso é natural. O sofrimento não precisa ser pessoal, para que cada um o sinta de certa forma e consiga se imaginar na pele do outro. Isso nos fez gregários. Assim nasceram as sociedades, os povos se organizaram, os países foram constituídos. Nessa ideia se inspiram as religiões. A cristã vai além de pedir que entendamos o sofrimento do semelhante. Avisa que é preciso amar o próximo.

O presidente do Brasil nos revela até que ponto pode chegar a insensibilidade ao sofrimento. Se o “E daí?” foi um tapa na cara do país, a piada da cloroquina/tubaína, seguida da gargalhada, no dia dos mil mortos, foi inqualificável. O dicionário da língua portuguesa parece gasto. As palavras andam fracas demais para qualificar o comportamento adotado por Jair Bolsonaro diante da dor dos brasileiros.

Quando tudo isso passar — e tudo isso passará — nós olharemos para trás e não acreditaremos que fomos capazes de tolerar esse tempo extremo. Veremos com espanto o pesadelo coletivo que atravessamos sem o amparo de palavras de conforto de quem o país escolheu para o posto mais alto da administração. Os erros de gestão terão levado muitas pessoas à morte, mas nem poderemos saber que vidas seriam poupadas. Muitos serão os filhos do talvez. Haverá, então, a batalha das versões e é apenas nela que pensa Jair Bolsonaro.

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