quarta-feira, 27 de maio de 2020

Paulo Fabio Dantas Neto* - Fases e faces do isolamento político de Bolsonaro

O isolamento político do presidente Bolsonaro quase sempre vem sendo tratado como processo contínuo e, de certa forma, como um destino inexorável. O próprio presidente usou, na reunião ministerial de 22.04, a imagem do barco em direção a um iceberg. Ele não parece se importar muito com isso. Parece veraz quando diz que está se lixando para a reeleição. Sua aposta é outra e errará o partido ou liderança de oposição que centrar sua estratégia em acumular força para vencê-lo nas urnas de 2022. Bolsonaro deve saber que a recessão econômica, já certa, é fator que, somado à sua conduta temerária perante a pandemia, complica as chances de vencer uma eleição em dois turnos. Seu destino eleitoral mais provável seria o que teve Haddad, em 2018. Como não tem compromisso democrático, nem espírito esportivo, adota um script golpista. Perdido por um, perdido por mil. A melhor defesa é o ataque. Só falta descobrir como esse script terá sucesso na presença das instituições defensivas da Carta de 88.

Às vezes, analistas cometem erro similar ao de Bolsonaro. Tratam seu isolamento político como dado. Prestam mais atenção ao embate publicístico e atenção secundária a movimentos moleculares no interior de arenas institucionais, onde a política é decidida, ainda mais em tempos de isolamento social. Por esse viés, o isolamento de Bolsonaro é mais um pano de fundo, não um processo mutante e sinuoso, que merece ser acompanhado mais de perto.

É certo que o isolamento político é relevante e que a erosão do apoio social ao presidente, caso prossiga, deve agravá-lo ainda mais. Mas esse isolamento diminuiu, a partir de meados de abril. O ponto de inflexão foi a exoneração de Luiz Mandetta, do ministério da Saúde. Ali Bolsonaro começou a sair das cordas e passou a atacar o Congresso e os governadores, coração e braços da articulação política que produzia governabilidade e cooperação federativa para combate à pandemia e a redução de danos econômicos e sociais que ela causou. Livrando-se do ministro, eliminou um dos fatores de convergência e despolarização, condições ambientais da política nas quais o presidente respira mal. A polarização é seu oxigênio. Mas como o ministro saiu sem polarizar e o Congresso continuou focado, a dose certa do veneno teria que vir de outro lugar.

A segunda crise, com o ex-ministro Sergio Moro, não foi mero prolongamento da anterior. A conduta do presidente foi a mesma, mas os desdobramentos políticos das duas crises foram opostos. A primeira manteve e a segunda arrefeceu o isolamento do presidente. Provocado nos bastidores, o até então bem-comportado ministro desembarcou subitamente, ao seu estilo midiático. Sem qualquer controvérsia pública precedente, saiu atirando. Em pouco mais de uma semana caiu, vertiginosamente, a taxa de oxigênio do ar. Bolsonaro e Moro o confiscaram.

Com ajudas de militares palacianos e de um revival lavajatista, patrocinado por parte da mídia. São evidentes os efeitos do redirecionamento de foco. No centro da cena pública geral, em vez de um arranjo federativo, a Polícia Federal. Um vale tudo começa na denúncia contra Bolsonaro e não acabará na operação contra o governador do Rio. Quando o léxico policial predomina, a linguagem corrente da guerra eclipsa a gramática da política. Sinal verde às milícias da hora.

Em ambientes institucionais específicos nota-se também que a inflexão não foi pequena. No Congresso, especialmente na Câmara, preserva-se a liderança do presidente Rodrigo Maia, mas sua política prudencial, que confere independência ao Poder e governabilidade ao País, sofre bem mais embaraços do que sofria até abril. Rapidamente surgiram vozes oposicionistas a querer converter o Legislativo em tribunal, enquanto o governo finalmente começa a ter base parlamentar e o ânimo moralista ressuscitado quer que Maia a confronte, como se fosse um amador. No STF, decisões monocráticas polêmicas, como a do ministro Moraes, se não voltam a dividir o colegiado, abrem brechas a constrangimentos e mesmo contestação. E no Executivo é inegável que os militares palacianos se alinharam de modo mais estreito ao Presidente, assim como se tornou mais coeso o ministério. O escandaloso vídeo da reunião do dia 22 de abril não deve iludir. Se por um lado revela um caminho sem volta na degradação moral e administrativa do governo, por outro, a desorientação ali flagrada é um instantâneo do auge do isolamento, quando o desespero batia à porta. O bate cabeça daquele momento está, por enquanto, controlado por uma ordem unida. O processo é o mesmo, mas o momento político é outro.

A política prudencial tem reagido às contraofensivas paralelas do golpismo presidencial e do maniqueísmo investigativo. No dia 21 de maio veio à luz a primeira cria do seu artesanato. Uma chance de governabilidade um pouco mais sustentável insinuou-se na reunião federativa de Bolsonaro com a cúpula do Legislativo e os governadores. Terá sido soterrada pela nova onda de confronto com o STF, puxada por um factoide criado pelo ministro Augusto Heleno, chancelada pelo ministro da Defesa, surfada pelo Presidente e agora renovada pela PF no Rio?

Os civis-militares que cercam o Presidente tentam colar a pecha de radical no decano do STF, no intuito de imobilizar, preventivamente, as Forças Armadas, para o caso de milícias bolsonaristas irem a vias de fato com o Judiciário. Bolsonaro, particularmente, tenta fazer Celso de Mello passar por leviano, ao acusá-lo de cúmplice de uma denúncia vazia de Sergio Moro. Enquanto militares palacianos dirigem libelos às Forças Armadas, o presidente busca simpatias no meio político ao retaliar Moro. Tenta imobilizar também o Congresso e quebrar sua espinha política, para tornar o confronto com o STF uma briga de rua contra um poder desarmado.

O script não precisa de prévio apoio militar ou congressual. Precisa, num primeiro momento, da inação das forças armadas e da neutralização da elite política. Precisará também de um caos social para impelir os militares a agir, a pedido do Executivo, em nome da ordem. Perante o caos fomentado, fazer as forças armadas apoiarem um estado de sitio e o Congresso aceitá-lo.

Esse desejo todo precisa se acertar com a realidade. A performance institucional da democracia brasileira, até aqui, não sugere que ele dê certo, embora o fomento ao caos e o armamento de milícias preocupem muito. O próprio discurso de armar o povo dificulta a relação do bolsonarismo com os chefes militares distantes do grupo palaciano. Mas esse grupo age como se seguisse um caminho sem volta. Com ou sem Bolsonaro, vai querer usar a ideia ou a realidade do caos social para levar o pais ao estado de sitio, estação intermediária para uma guardiania militar. Esse pode ser o plano B do governismo que flerta com a lógica paramilitar. Cabe, aqui, quanto ao seu êxito, o mesmo comentário cético dirigido ao plano A.

Contra o inseto e o inseticida só vejo no horizonte uma alternativa realista: a conservação do arranjo federativo improvisado que resultou da reunião do dia 21 de maio. Para isso precisará haver sintonia fina entre Congresso e governadores para estabelecer consensos legislativos e obter a cooperação que for possível em áreas da burocracia federal que ainda não foram destruídas. Com essa força reunida pode se atualizar e redesenhar uma pauta para melhorar a proteção aos vulneráveis e a empresas e se pressionar e negociar com os militares da saúde procedimentos mínimos que detenham a devastação que se promove na área. Esse arranjo governativo civil é crucial para que o povo não se sinta à deriva e passe a preferir a guardiania militar. Mas não prescindirá de um STF unido e focado no outro lado da moeda, que é continuar a rejeitar e, eventualmente, deter as investidas subversivas do presidente.

Trata-se aqui de manter sintonia fina entre Congresso e STF e de articulação da elite política com imprensa e sociedade civil. Se um desses dois poderes republicanos der um passo ou uma parada em falso, antecipando-se ou retardando-se em relação ao outro, os militares ver-se-ão, diante do desgoverno, na condição de assumir a posição de "moderadores". É isso o que o bolsonarismo espera conseguir e persegue. É o que cabe aos democratas frustrar, para ater os militares à missão constitucional de proteger o Estado e a Nação, sob liderança do poder civil.

As preocupações procedem, não sendo à toa que o tema dos militares tem comparecido, não só às redes sociais e rodas de conversa virtuais, como ao noticiário, colunas, entrevistas e debates na grande imprensa e mobilizado muitas opiniões qualificadas. Entre o racionalismo moderado e contido do discurso de posse do ministro Luiz Barroso no TSE e a análise informada e embebida de realpolitik de Raul Jungmann, na Roda Democrática, sinto-me ainda mais persuadido pela prudente combinação de experiência e razão exposta por Celso Lafer em recente entrevista ao Roda Viva. Ela nos sugere uma atitude de serenidade atenta.

Para as lideranças e partidos políticos, não há mais espaço para brincar com holofotes. Importante não perder o foco, que precisa ser duplo: garantir, ao Brasil e ao seu povo, algum governo nessa hora dramática e apoiar o prosseguimento firme e sereno do processo judicial, a cargo do STF, sem permitir que o adversário escolha a hora do confronto. Democratas realistas que sabem fazer a hora sabem também que ela virá, mas ainda não é agora.

Surge aqui a questão do impeachment. Como solução política penso que vale a pena, quando for possível e se for um processo cívico, cujo arco de apoio abranja todo o espectro político democrático. Diante da diminuição relativa do isolamento do presidente, talvez essa opção não se consume, ou não se recomende, se dividir esse campo e assim perder sua razão de ser. Nesse caso, por razão política razoável, será preciso e melhor esperar 2022, se também possível. Na incerteza, a prudência manda que se pense nos dois caminhos, sem descartar um deles. O que não se pode arriscar é não termos saída democrática possível em 2022 porque se terá deixado a sabotagem da democracia consumar seu desiderato, sem a devida contenção institucional.

Mas mesmo afastado Bolsonaro, por um impeachment de caráter cívico e após a pandemia, como se sustentaria uma ponte, ou pinguela, até 2022, num contexto destroçado pela pandemia e pela recessão econômica? A conduta do gal. Mourão insinua analogia com as de Itamar Franco ou Michel Temer? São apenas perguntas para as quais não tenho resposta. O que podem, creio, os democratas, de centro, de esquerda e de direita, é definir uma tática: evitar a polarização entre si e dar caráter cívico-político, não político-ideológico, à polarização com Bolsonaro. Com isso, tentar evitar a fragmentação de 2018, pela qual pagamos até agora.

*Cientista político e professor da UFBa.

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