quinta-feira, 18 de junho de 2020

A caravana passa – Editorial | O Estado de S. Paulo

Quando o presidente cobra do STF observância à democracia e à Constituição, como tem feito, obviamente não é por reverência nem a uma nem à outra, já que jamais as respeitou

À medida que o cerco judicial se fecha em torno das ilegalidades do movimento bolsonarista, com o avanço da investigação contra os camisas pardas das redes sociais e a quebra de sigilo bancário de parlamentares que integram a tropa de choque de Jair Bolsonaro no Congresso, o presidente da República demonstra crescente nervosismo – talvez por perceber que os rosnados bolsonaristas não têm sido suficientes para intimidar o Judiciário e fazê-lo dobrar-se a seu projeto de poder.

“Eles estão abusando”, disse o presidente um dia depois da operação da Polícia Federal para desbaratar a máquina bolsonarista de destruição de reputações na internet, em investigação no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), e da ordem do Supremo, a pedido da Procuradoria-Geral da República, para apurar o suposto envolvimento de parlamentares bolsonaristas no fomento de manifestações golpistas.

O Supremo e o Ministério Público não fizeram nada além de sua obrigação, especialmente ante a escalada fascistoide protagonizada pelos bolsonaristas, sob inspiração do presidente. É preciso demonstrar a esses liberticidas, de maneira cabal, que a democracia tem seus mecanismos de defesa, especialmente uma democracia que surgiu da trágica experiência de duas décadas de ditadura. Os saudosos daquele período de exceção, inconformados com a redemocratização, devem saber que seus devaneios autoritários encontrarão intransponível obstáculo na Constituição.

Isso não significa que o bolsonarismo esmorecerá. Bolsonaro não conhece outro comportamento que não seja o do confronto. Trata opositores não como adversários políticos, mas como inimigos a serem aniquilados. A democracia, que pressupõe o embate civilizado de ideias, no âmbito das instituições, lhe é estranha. Quando deputado, em 1999, defendeu o fechamento do Congresso e disse que a ditadura deveria ter fuzilado 30 mil dissidentes, inclusive o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Não consta que tenha se retratado dessa e de outras declarações de teor semelhante nesse tempo todo.

Ou seja, Bolsonaro nunca deixou de ser Bolsonaro – e a faixa presidencial só lhe acentuou o cesarismo. Quando o presidente cobra do STF observância à democracia e à Constituição, como tem feito nos últimos dias, obviamente não é por reverência nem a uma nem a outra, já que jamais as respeitou. O que ele pretende é confundir a opinião pública, convencendo-a de que o único exegeta legítimo da Constituição é ele próprio, por ser alegadamente a encarnação da vontade popular.

Seu discurso não deixa margem para dúvidas. “Queremos acima de tudo preservar a nossa democracia. (...) Nada é mais autoritário do que atentar contra a liberdade de seu próprio povo”, disse Bolsonaro, referindo-se à ação judicial e policial contra seus sabujos. “É o povo que legitima as instituições, e não o contrário. Isso sim é democracia”, continuou o presidente, sugerindo que o Supremo, ao investigar bolsonaristas, está atentando contra o “povo”. Por fim, depois de dizer que não pode “assistir calado quando direitos são violados e ideias são perseguidas”, o presidente anunciou que tomará “todas as medidas legais possíveis para proteger a Constituição e a liberdade dos brasileiros” – como se estas estivessem ameaçadas não pelos arreganhos bolsonaristas, mas pelo STF.

Bolsonaro reivindica, assim, a guarda da Constituição, embora a própria Carta atribua essa função ao Supremo. E o presidente o faz em nome dos militares, como quando, apresentando-se como comandante supremo das Forças Armadas, informou que “nós (os militares) jamais aceitaríamos um julgamento político para destituir um presidente democraticamente eleito”. Ou seja, como bem observou o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann em artigo na Folha de S.Paulo, Bolsonaro elevou as Forças Armadas, sob seu comando, “à condição de intérprete e árbitro final de disputas entre os Poderes da República”, o que “não é previsto em nenhum dos artigos da atual Constituição”. Pior: o presidente considera que cabe às Forças Armadas, e não ao Judiciário, decidir sobre a inobservância das leis.

Com base nesses pressupostos absurdos, o presidente advertiu: “Está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”. É o que o Supremo está fazendo.

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