segunda-feira, 29 de junho de 2020

A geopolítica do pós-pandemia – Editorial | O Estado de S. Paulo

No auge da guerra fria entre os Estados Unidos e a então União Soviética, dizia-se que apenas uma grande e inesperada ameaça comum, como uma invasão alienígena, seria capaz de unir as duas superpotências em torno de um projeto de cooperação global. Hoje o planeta se vê às voltas com um problema bem mais concreto e letal do que um ataque de marcianos hostis, a pandemia de covid-19, mas nem Donald Trump nem Xi Jinping parecem dispostos a conduzir um entendimento entre os Estados Unidos e a China, os superpoderosos do século 21, na direção de um plano global para enfrentamento dos efeitos da doença.

E quão profundos serão esses efeitos no atual equilíbrio geopolítico? O Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), em parceria com o Instituto Fernando Henrique Cardoso, realizou um webinar para tratar do tema com Joseph Nye, professor emérito e ex-reitor da Kennedy School of Government, da Universidade Harvard, o embaixador Sérgio Amaral e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Muito tem sido especulado sobre o potencial da pandemia de covid-19 para mudar o equilíbrio de forças entre os Estados Unidos e a China. A emergência sanitária seria, de fato, um ponto de inflexão? Mais: a pandemia tem o condão de selar o fim da chamada “Era Americana”? É muito cedo para predições desse tipo. Não se pode perder de vista que a ciência ainda estuda o comportamento do novo coronavírus e não se sabe quantas ondas de infecção ainda podem irromper, se é que isso vai acontecer. Diante dessas incertezas, convém ter em conta dados mais objetivos para analisar os desdobramentos geopolíticos da pandemia, a começar por uma reflexão sobre aquele suposto “equilíbrio”. Como bem lembrou o professor Nye, a economia chinesa equivale a dois terços da economia americana. Além disso, os gastos militares dos Estados Unidos são três vezes maiores do que os da China. Como evento isolado, a pandemia de covid-19 não muda essas importantes variáveis. Portanto, não parece ser este o momento em que a China ultrapassará os Estados Unidos, que continuarão dando as cartas no cenário global.

Mas, se é bastante razoável a ideia de que a pandemia não tem condições de alterar o balanço de forças entre os Estados Unidos e a China, é totalmente pertinente avaliar como a liderança nestes dois países tem sido exercida. Tanto Donald Trump como Xi Jinping têm respondido muito mal à pandemia, seja politizando questões de natureza estritamente sanitária, seja minando a força das autoridades científicas na crise. A diferença essencial entre um e outro caso é que Trump tem de se sujeitar aos cânones democráticos dos Estados Unidos, enquanto Xi usa a pandemia para concentrar ainda mais poder, assim como fizeram outros líderes autocráticos mundo afora, como o primeiro-ministro Viktor Orbán, da Hungria, e o presidente Rodrigo Duterte, das Filipinas. Isso não quer dizer que a democracia esteja ameaçada pela eclosão da pandemia. Como bem lembrou o professor Joseph Nye, as melhores respostas à emergência sanitária foram dadas por governos democráticos, como os da Nova Zelândia, da Coreia do Sul e da Alemanha.

A democracia, portanto, não está mais ameaçada em decorrência da pandemia do que já estava antes dela em alguns países. Tampouco a globalização. O novo coronavírus, evidentemente, desconhece fronteiras. “A pandemia escancarou a premência da cooperação internacional”, disse o professor Nye, ao contrário do que pregam os críticos do multilateralismo.

Problemas preexistentes foram potencializados pela eclosão da nova emergência sanitária. É para eles que o presidente Jair Bolsonaro deve olhar com muito cuidado, recomendou FHC. O novo coronavírus escancarou a brutal concentração de renda no País, expôs ainda mais a miséria dos que vivem nas favelas e periferias e ressaltou a urgência de investimentos no Sistema Único de Saúde (SUS). Com razão, FHC criticou o alinhamento automático de Jair Bolsonaro às ideias do presidente Trump, negligenciando o interesse nacional, que deveria estar no topo de seu rol de preocupações. “Sem liderança não vamos a lugar nenhum”, disse FHC.

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