segunda-feira, 15 de junho de 2020

*Bruno Carazza - Change partners

- Valor Econômico

Pode estar em curso uma troca de base popular na qual se ancora o presidente

Logo após a derrota para Collor no segundo turno das eleições de 1989, Lula fez a seguinte avaliação sobre o resultado das urnas: “A verdade nua e crua é que quem nos derrotou, além dos meios de comunicação, foram os setores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade. Nós temos amplos setores da classe média com a gente, mas a minha briga é sempre esta: atingir o segmento da sociedade que ganha salário mínimo. Nós temos que ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se deixam seduzir pela promessa fácil de casa e comida”.

O diagnóstico e o prognóstico do líder petista estavam ancorados em dados. De acordo com pesquisa Ibope realizada às vésperas daquele pleito, as intenções de voto em Lula estavam negativamente relacionadas com a renda familiar do eleitor: Lula perdia para Collor por 41% a 51% no segmento que ganhava até 2 salários mínimos por mês, mas tinha a preferência nas faixas de 2 a 5 SM (49% a 43%), de 5 a 10 SM (51% a 40%) e no grupo que recebia mais de 10 salários, com 52% a 40% a favor do petista. Como no Brasil o número de pobres é muito maior, Collor sagrou-se vencedor em 17/12/1989 com 4 milhões de votos de frente (53% a 47%).

Em “Os Sentidos do Lulismo”, André Singer buscou entender o fenômeno ocorrido durante o primeiro mandato petista na Presidência da República. De um lado, a consolidação de diversos programas sociais no Bolsa Família, a política de valorização do salário mínimo e a ampliação do crédito consignado permitiram a Lula finalmente conquistar a desejada parcela mais pobre (e numerosa) do eleitorado.

De outro, o escândalo do mensalão afastou do PT parte de seu eleitorado cativo na classe média, decepcionada pelo partido ter rasgado a bandeira da ética - num processo que acabou se aprofundando alguns anos depois, com a operação Lava Jato.

A reeleição de Lula em 2006 evidencia essa guinada nas preferências por Lula: segundo os cálculos do Datafolha, na parcela do eleitorado que ganhava até 2 salários mínimos, o petista batia seu rival Geraldo Alckmin (PSDB) de lavada (por 64% a 25%), enquanto entre os mais ricos (com renda familiar mensal superior a 10 SM), o tucano aparecia à frente nas pesquisas com 54% a 36%. “No lulismo a polarização se dá entre ricos e pobres, e não entre esquerda e direita”, de acordo com Singer. Daí em diante, esse padrão foi mantido em todas as eleições presidenciais.

Na última sexta-feira, a pesquisa XP/Ipespe atestou que, mesmo após a saída de Sergio Moro e o acúmulo de mortos pela pandemia, Bolsonaro conseguiu, pelo menos por ora, estancar a sangria da sua popularidade. Analisando os dados desagregados, é possível identificar um expressivo crescimento na avaliação positiva do presidente nos segmentos mais vulneráveis da população, como jovens, indivíduos com baixa e média escolaridade, desempregados, com renda de até 2 salários mínimos e localizados no Nordeste e em cidades pequenas.

A melhoria da imagem de Bolsonaro perante um eleitorado que nunca foi prioritariamente seu pode ser atribuída, entre outros fatores, à concessão do auxílio emergencial de R$ 600 durante a pandemia. E a mensagem foi captada pelo presidente e sua equipe, a ponto de Paulo Guedes ter anunciado, na última reunião ministerial, a intenção de lançar o programa Renda Brasil.

É verdade que, em tempos de covid-19, com arrecadação em queda e dívida crescente, há pouco espaço fiscal para algo muito revolucionário. Mas, por mais paradoxal que possa parecer, a própria pandemia pode ajudar a viabilizar um amplo programa bolsonarista voltado para os mais pobres, pois uniu economistas e políticos de diversos matizes no apoio a iniciativas de renda mínima. Pode surgir daí, portanto, um clima propício para uma remodelação de políticas sociais esparsas e mal focalizadas, a serem concentradas num único “Bolsa Família turbinado” que pode dar a Bolsonaro um grande capital político com vistas a 2022.

Nas últimas semanas o presidente tem alternado movimentos de defesa e ataque buscando não apenas manter seu eleitorado cativo mobilizado, mas também ampliar seu capital político para, assim, sobreviver à tempestade em que, de certa forma, ele próprio se colocou. Numa frente de batalha, fustiga os demais Poderes e investe com a Polícia Federal em investigações que tendem a enfraquecer os governadores, enquanto na retaguarda coopta o Centrão e acena com benefícios à parcela mais pobre do eleitorado.

Ainda é cedo para afirmar que Bolsonaro será bem sucedido em manter e ampliar sua aprovação junto aos mais desfavorecidos - não podemos perder de vista que Lula conseguiu fazê-lo não apenas com o Bolsa Família, que era apenas um dos ingredientes num processo que envolvia ainda PIB, emprego e renda em alta. Mas uma eventual estratégia do atual presidente em deixar de lado a dicotomia esquerda e direita, pela qual foi eleito, para focar num público que condiciona seu voto mais à melhoria de suas condições do que em aspectos ideológicos, tal qual Lula fizera no seu primeiro mandato, pode tornar ainda mais complicadas as pretensões de uma “frente ampla” que deseja ver Bolsonaro fora do Palácio do Planalto - seja por meio de um impeachment, uma decisão do TSE ou no voto, em 2022.

Se Bolsonaro conseguir atrair para si parcelas mais expressivas do eleitorado mais pobre, uma “frente ampla” só será vitoriosa se, além de superar rivalidades e vaidades de seus protagonistas, conquistar também corações e mentes das classes média e alta insatisfeitas com o ex-capitão. E isso passa, necessariamente, pela cicatrização de feridas ainda abertas relacionadas à valorização do combate à corrupção, de um lado, e ao combate às desigualdades sociais, de outro.

Enquanto Bolsonaro chama os pobres para dançar, os integrantes de uma frente ampla precisam virar o disco com o qual estão acostumados a ouvir nos últimos 15 anos e entenderem que a defesa da ética está no mesmo compasso do progressismo social.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.

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