terça-feira, 2 de junho de 2020

Carlos Andreazza - A democracia infantil

- O Globo

O Brasil, sob o norte da mentalidade autoritária, é refém do tribalismo

Receio que nos tenhamos acostumado, cada um com seus ressentimentos, a que democracia seja medir-se nas praças com o adversário; com o inimigo — porque a gramática é de guerra. Nesses termos, quem poderá mais? Ou melhor: quem se beneficiará, afinal, de um embate cujo produto só pode ser a conturbação?

Receio que nos tenhamos tornado adictos da adrenalina própria à instabilidade, parasitas da depressão política que se aprofunda e traga o país. Jair Bolsonaro é a intensificação da instabilidade — o vício na instabilidade também sendo vício nele.

O Brasil é país doente; doença da qual Bolsonaro, presidente eleito, é a mais alta febre. Vamos para a briga de rua de modo a vencer uma convulsão? É essa a ideia? Valer-se do vocabulário da rinha para enfrentar quem monopoliza o dicionário da guerra?

Partir ao confronto, físico, contra quem se alimenta da radicalização?

Desde há muito denuncio o investimento bolsonarista na forja de movimentos plebiscitários para pressão — para intimidação. As facções têm agenda clara — que costura intervenção militar e os fechamentos do Congresso e do Supremo. Desafiá-los no mesmo tom, no mesmo chão, será legitimar a linguagem beligerante e admitir como terreno o dos tacos, que é o mesmo das bombas, que é o mesmo da desobediência civil — que é o mesmo do estado de sítio. Há quem só espere uma oportunidade.

Fora dos marcos republicanos só prosperam aqueles cujo projeto de poder dependa do esvaziamento — da corrosão do caráter — das instituições.

O espírito do tempo é lavajatista, jacobinista — e que não pensem os que desprezam a figura do justiceiro Moro e o papel dos dallagnols de Curitiba estarem imunes à doença. A doença: a da justiça com as próprias mãos. O zeitgeist é o do justiçamento — produto de uma sociedade que não acredita em sua institucionalidade, a qual aceita atalhar, esgarçar, se para que triunfem os propósitos nobres que, ora, todos temos.

Somos todos democratas, todos bem-intencionados. Certo? Aqueles patriotas, vestidos de intervenção militar, que bradam pelo fechamento do STF — declaram-se democratas e de bem — e os valentes que os combatem, aquelas falanges de torcidas uniformizadas de clubes futebol que marcharam contra o fascismo, com as tantas mortes que já causaram e com as tantas ligações com organizações criminosas que têm; também se dizem democratas e gente boa.

Quem poderá mais, entre esses virtuosos?

O Brasil — sob o norte da mentalidade autoritária — é refém do tribalismo; o próprio paraíso de um autocrata. O paraíso do autocrata — nesta altura, depois de cavalgar pela esplanada como um Newton Cruz, feliz da vida: a descrença nos meios institucionais, descrença que o elegeu, compartilhada com os que, pelas próprias mãos, desejam derrubá-lo. Bolsonaro agradece.

O sonho do autocrata: que grupos em defesa da democracia saiam às ruas para arrostar o fascismo. Não é belo, corajoso? O mundo real, contudo, pergunta: qual é a agenda? É só a sectária, da força pela força, para dar vazão ao revanchismo e ir à forra na pancada, ou se pleiteia, por exemplo, o impeachment do presidente? Qual a agenda?

Recordemos que, expressando-se a rojões, gente sob o mesmo impulso democrático — certamente antifascista — matou o cinegrafista Santiago Andrade em 2013. Qual o projeto? Porque, sem demanda institucional, será só anarquia.

Lembremos que os que ora chamam Bolsonaro de fascista são os mesmos que de fascista chamavam Fernando Henrique Cardoso. Não têm credibilidade. Tampouco a musculatura policial. E não se franqueia a pista de um baile autoritário se não se quer que o autoritário que comanda o guarda da esquina dance.

Nota importante: o apoio fardado ao bolsonarismo — já escrevi nesta coluna antes — não estará nas Forças Armadas, mas em influentes setores das polícias estaduais, como aqueles que se amotinaram no Ceará. Houve amostras — no domingo, em São Paulo — de como podem se manifestar seletivamente entre democratas.

Que não se pense que o que se viu no último fim de semana, especialmente na Avenida Paulista, enfraqueça Bolsonaro. Bem ao contrário: fortalece-o. Uma blitz de homens de preto — vestidos de revolução — para reação e choque. Ele agradece, o reacionário, também ele revolucionário — também ele democrata, segundo Paulo Guedes. A quem aquilo atrai? Aquilo atrai ou repele? Aquilo atrai o cidadão — o cidadão de saco cheio das crises geradas pelo presidente — ou o faz lembrar de por que votou no sujeito? Ou a ideia não seria atrair o cidadão que não é militante do PCB? Qual a agenda?

Ah, sim. Não interessa quem atacou primeiro. Interessa que houve confusão; filme já tanto visto e que ativa — revitaliza — o discurso da ordem. Bolsonaro agradece. Os que — em nome da democracia — vão para o conflito, para a porrada, para a quebradeira, entregam o que busca o bolsonarismo. O caos.

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