domingo, 7 de junho de 2020

*Gustavo Binenbojm - As Forças Armadas e a Constituição

- O Globo

Juristas delirantes ressurgiram com teses heterodoxas sobre exercício de poder moderador pelas Forças Armadas

Jair Bolsonaro certamente não sabe quem foi Carl Schmitt. Então, para ficarmos na mesma página, vou apresentá-lo brevemente. Schmitt foi um jurista alemão que inspirou as concepções totalitárias do Estado hitlerista, contribuindo para jogar por terra os fundamentos liberais e democráticos da Constituição de Weimar. Para Schmitt, o estado de direito seria suspenso em momentos de crise, não havendo aí senão que o poder da força.

Neste estado de exceção, as decisões seriam livremente tomadas pelo soberano, sem qualquer limitação das leis. Às Forças Armadas cumpriria o papel de atuar como fiel da balança do jogo político, dando respaldo às decisões do ditador até que restabelecida a normalidade institucional. O resto da história é conhecido. Milhões de seres humanos inocentes foram assassinados pela fúria bestial do regime nazista.

Do segundo pós-guerra para cá, a democracia constitucional espalhou-se pelo mundo ocidental, retomando as noções de estado de direito e governo limitado. No Brasil, a Constituição de 1988 representou a vitória desses ideais, sem qualquer espaço para hiatos ditatoriais. A distribuição de funções entre distintos Poderes constituiu uma espécie de poliarquia na qual nenhum deles é soberano, mas todos devem igual reverência à Constituição. Para situações de grave abalo institucional, há regras excepcionais que preveem a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio, condicionados a controles exercidos pelo Legislativo ou pelo Judiciário.

Quando todos achávamos que o ideário totalitário havia sido jogado na lata de lixo da História, eis que alguns juristas delirantes ressurgiram com teses heterodoxas sobre o exercício de um poder moderador pelas Forças Armadas. Mais exótico ainda: sustentam que o art. 142 da Constituição daria guarida a esse suposto papel dos militares de árbitros dos conflitos entre Poderes. Alinho, a seguir, quatro razões pelas quais a tese não resiste a um sopro de bom senso.

Primeiro: a Constituição não se interpreta em tiras. Ela é uma unidade. O art. 142 está inserido num sistema normativo que prevê a independência e harmonia entre os Poderes, sem que haja um Poder Moderador que exerça supremacia sobre os demais. Os controles recíprocos são a forma de composição de eventuais conflitos. As Forças Armadas não são um Poder da República, mas uma instituição à disposição dos Poderes constituídos para, quando convocadas, agirem instrumentalmente em defesa da lei e da ordem.

Segundo: a chefia suprema das Forças Armadas cabe ao presidente da República (art. 84, XIII e art. 142), sendo elas subordinadas, ainda, ao ministro da Defesa (EC 23/1999). O presidente da República, a seu turno, deve obediência às leis e às ordens judiciais. Tanto assim que, no seu eventual descumprimento, o presidente comete crime de responsabilidade, podendo perder o mandato por impeachment (art. 85, VII). Como instituição baseada na hierarquia e disciplina (art. 142), não faria sentido que as Forças Armadas pudessem se sobrepor aos demais Poderes, uma vez que nem o chefe do Poder Executivo goza de tal prerrogativa.

Terceiro: o art. 102 atribui ao Supremo Tribunal Federal o papel de guardião da Constituição, cabendo-lhe, como órgão máximo do Poder Judiciário, interpretar as normas constitucionais em caráter final e vinculante para os demais Poderes. Só o Poder Legislativo tem a possibilidade de aprovar emendas à Constituição, superando decisões do Supremo, assim mesmo quando isto não contrariar cláusulas pétreas do texto constitucional.

Quarto: por último, mas não menos importante, o art. 1º proclama que o Brasil é um Estado democrático de direito, no qual todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição. Qualquer instituição que pretenda tomar o poder fora desses canais de legitimação estará agindo contra o texto e o espírito da Constituição.

*Gustavo Binenbojm é professor titular da Faculdade de Direito da Uerj

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