sexta-feira, 19 de junho de 2020

José de Souza Martins* - Julgamentos de estátuas

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Demolir símbolos das injustiças sociais do passado é justiçamento tardio, mas não é justiça que supere as injustiças que chegaram até nós

As reações, em diferentes países, ao assassinato de George Floyd, um homem negro, pela polícia, nos EUA, por ter tentado pagar uma conta com 20 dólares falsos, desdobrou-se, em diferentes países, no ataque a estátuas e monumentos públicos. São eles considerados descabidas celebrações da escravidão negra na África e nas Américas.

O movimento proclama direitos identitários dos que ficaram à margem da história, vítimas não só da discriminação explícita, mas também da discriminação oculta, refugiada na hipocrisia tão própria da sociedade contemporânea.

Muitos dos que veem racismo em monumentos e obras de arte, no modo como a eles reagem, porque discriminam quem não lhes é igual, não raro, são tão racistas quanto aqueles que condenam. Não compreendem que a consciência socialmente crítica é um momento da superação das iniquidades que nos incomodam. Demolir símbolos das injustiças sociais do passado é justiçamento tardio, mas não é justiça que supere as injustiças que chegaram até nós.

Se o poder não tendesse a cegar quem, por desinteresse ou alienação, o personifica em relação à complexidade das questões sociais, os enigmas contidos nos monumentos seriam compreendidos, evitados ou corrigidos pelos governantes. A sociologia, a antropologia e a filosofia os ajudaria a não correr o risco da sua redução a agentes de intolerância.

Teriam outro entendimento do que é a sociedade e sua história. Seriam mais econômicos na disseminação de estátuas símbolos de classe social e menos econômicos na disseminação de obras de arte de simbolização universal da condição humana.

Na mentalidade popular e na da elite, a mesma distorção preside nossa concepção da história, a de que é ela unilateral, linear e dos que mandam. A história é processo movido por contradições que respondem pela legítima diversidade dos atores, seus desencontros e, também, seus encontros. Os monumentos dão visibilidade não à história linear, mas aos momentos da história.

Na perspectiva crítica, documentam impasses históricos para que a sociedade chegasse onde chegou deixando tantos de fora, onde a sociedade poderia ter chegado e não conseguiu. São desafios à consciência social.

O ataque às estátuas expressa falta de compreensão de que elas não celebram a escravidão e o tráfico negreiro. Nem necessariamente o racismo. Elas celebram unilateralmente o lado virtuoso de escravistas, caso da estátua atacada em Bristol, na Inglaterra.

Foram erguidas como álibis da consciência de sociedades que só existiram graças aos lucros do cativeiro. Mas álibis impregnados de contradições de um passado que seria, justamente, decifrado pelo presente de outra geração e de outro momento da história.

Como no caso da mesma população que lincha estátuas para linchar o inaceitável da memória histórica. O poema de um dos hinos mais belos e mais cantados nas igrejas protestantes da Inglaterra e dos outros países de fala inglesa, “Amazing Grace” (“Sublime Graça”), foi escrito por um antigo traficante de escravos, John Newton (1725-1807), como expressão de seu arrependimento. Converteu-se e se tornou clérigo. Essa contradição emudecerá as igrejas que o cantam em relação ao que significa?

O homem retratado na estátua derrubada foi um traficante de escravos, mas foi, também, um caridoso benfeitor da sociedade local, razão do monumento que lhe foi erguido. Quem está sendo demolido: aquele ou este?

Aqui no Brasil, nestes dias, o monumento a Borba Gato, em São Paulo, é apontado como candidato a uma possível iconoclastia imitativa que, entre nós, vingaria a escravização dos índios. Não era um traficante de escravos. Foi descobridor de minas de ouro, esteve do “lado certo”, porque “nosso lado”, da Guerra dos Emboabas, emblemática manifestação do nativismo brasileiro.

O monumento a Borba Gato foi erguido na entrada de Santo Amaro porque ele era santamarense, município que foi reduzido a distrito da cidade de São Paulo. O monumento simboliza aspirações de autonomia da população local. Não por acaso é obra do artista plástico, também santamarense, Júlio Guerra (1912-2001).

Há dele outra obra, no Largo do Paiçandu, “Mãe Preta”, ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, de uma irmandade fundada por pretos livres e escravos no século XVIII. Se é para demolir, seriam demolidos os dois monumentos? E quem resolverá a contradição que em conjunto expressam?

É compreensível, mas é hipócrita, demolir monumentos sem nos revermos como cúmplices do que do passado nos envergonha e em nosso presente persiste e não nos incomoda. São poucos os que se incomodam com a escravidão no Brasil de hoje. Entre 2013 e 2019, havia aqui 1.216 trabalhadores escravizados, na roça e na cidade.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "O Cativeiro da Terra" (Contexto).

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