quinta-feira, 18 de junho de 2020

Maria Cristina Fernandes - A primavera tupiniquim

- Valor Econômico

Início do 4º trimestre conjugará crise política e caos social

A frequência com a qual o Judiciário e o Congresso são espicaçados nas redes sociais da chamada “família militar” e, principalmente, o tom com o qual o comandante-em-chefe se dirige a ambas as instituições, dimensionam a relevância dos encontros do comandante do Exército, Edson Leal Pujol, tem tido com seus representantes.

O temperamento do general é outro indicador do ineditismo do gesto. Pujol em tudo difere de seu antecessor, Eduardo Villas Bôas, autor de tuítes trepidantes às vésperas de votações-chave no STF e anfitrião de todos os candidatos à Presidência, em 2018. Ao tomar posse no cargo, Pujol proibiu manifestações políticas de seus comandados em redes sociais.

Durante a pandemia, fez grave pronunciamento sobre as medidas tomadas no Exército em relação ao que o presidente chamava de “gripezinha” e transformou seu cotovelo estendido ao comandante-em-chefe - e seu colega de turma de 1977 na Academia Militar das Agulhas Negras -, como símbolo de sua autonomia.

Os encontros aconteceram num momento de corda esticada. O ministro Luiz Fux esclareceu, em liminar, que a condição de comandante supremo do presidente não lhe dá poderes absolutos sobre as Forças Armadas, cujo uso está submetido à Constituição. A decisão foi respondida em nota do presidente Jair Bolsonaro que, de tão inseguro de sua supremacia, precisou se amparar na subscrição do vice e do ministro da Defesa para dizer que as Forças Armadas “não aceitam a tomada de poder por outro Poder da República”. Ante a abundância de porta-vozes, Pujol, que não fala, resolveu, pelo menos, ouvir.

É na primavera que este canal, agora aberto, pode se fazer, de fato, necessário, para evitar que os rompantes presidenciais turvem o horizonte. Em dez dias, o recesso do Judiciário vai jogar água na fervura das relações com o Executivo. Por mais que o Congresso esteja sendo pressionado a retomar os trabalhos presenciais em julho, os meios legislativos equivalentes de pressão, a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito ou de processos nos Conselhos de Ética das Casas, ainda têm viabilidade incerta.

O recesso é do Judiciário, não das investigações em curso, mas sessões como a de ontem no Supremo, quando as vísceras do bolsonarismo foram expostas à luz do dia, não acontecerão. Se a temperatura vai arrefecer em Brasília, porém, não o fará no resto do país. E não apenas no que se refere ao mandato presidencial.

O recesso do Judiciário torna cada vez mais difícil um acordo em torno da data de realização das eleições. Os prefeitos não querem adiá-las por não terem garantias de que conseguirão honrar as folhas de pagamento depois de outubro. Acontece que, para manter as eleições na data usual, há uma série de procedimentos, como o teste e a aferição da segurança das urnas, que requerem a presença de juízes avessos a sair do trabalho remoto.

Foi com esta barreira do Judiciário que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, se confrontou ao assumir a Corte. Inicialmente contrário ao adiamento, cedeu por pressão da corporação. Agora enfrenta a dos prefeitos. A queda de braço dá uma ideia do estelionato eleitoral que está por vir, o de prefeituras inadimplentes e funcionários que, sem salário, puxarão o freio de mão da economia de milhares de municípios que deles dependem.

É na primavera também que o STF troca de presidente. Sai o acomodatício ministro Dias Toffoli e entra Luiz Fux, um ministro egresso da magistratura, corporação que se desiludiu do bolsonarismo junto com o ex-ministro Sergio Moro. A liminar de sexta-feira sobre o artigo 142 da Constituição (uso das Forças Armadas) foi um aperitivo do que pode vir a ser sua gestão.

É no quarto trimestre do ano também que acabará a vigência tanto dos auxílios emergenciais quanto dos repasses extras da União a Estados e municípios. É em outubro que as empresas aderentes à medida provisória que reduz salário e jornada, passam a poder demitir.

Depois do levantamento da Instituição Fiscal Independente, relatado no Valor por Lu Aiko Otta, ficou ainda mais difícil acreditar em socorro eficiente do governo federal. Seja porque a administração bolsonarista não é capaz de gerir os gastos, seja porque não quer. Num país que está até hoje sem ministro da Saúde, em meio a uma pandemia, e conta com dois secretários do Tesouro, o atual, e aquele porvir, as prioridades falam por si.

Se nos meses iniciais da covid-19, quando foi preciso construir hospitais de campanha, comprar respiradores, equipamentos de proteção e testes num país que ruma para os 50 mil mortos, o governo não conseguiu gastar nem mesmo um terço dos recursos autorizados para as despesas emergenciais, é porque reina a inépcia. Não se trata de deixar o homem governar. Ele simplesmente não consegue.

É com problemas sociais e econômicos avolumados e um ministro da Economia que insiste em reformas e privatizações para dar conta de uma emergência pública que o Brasil chegará ao início do último trimestre do ano. Até lá, a pandemia poderá ter arrefecido, liberando as manifestações de rua, momento tão aguardado pelo presidente da República.

A última manifestação contra o Supremo Tribunal Federal mostrou o bafo da ameaça policial. A inação dos policiais militares frente aos extremistas custou a cabeça de um subcomandante da PM do Distrito Federal. Do Ceará, onde reina o chefe da Força Nacional, mais conhecido como marido da deputada Carla Zambelli, ao DF, onde a categoria foi agraciada com um aumento em medida provisória editada em plena pandemia, pipocam os focos do dispositivo policial.

A última esperança de Bolsonaro para a mobilização das Forças Armadas a seu favor é um ambiente de conflagração social, do qual as PMs sejam parte do problema, e não da solução. Sonha com um Cavalo de Troia invisível que se revelaria três décadas depois, na expressão de Diego Werneck e Tomaz Pereira. Como do outro lado estão todos fartos de mitos, se puseram a conversar.

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