sábado, 20 de junho de 2020

Míriam Leitão - A escalada do vírus entre nós

- O Globo

O Brasil chegou a um milhão de infectados disputando o campeonato de pior país do mundo no combate a pandemia

Um milhão é um número assustador e sabemos que ele é apenas o que está registrado. O Brasil superou esse número de infectados pelo novo coronavírus sem uma luz no fim do túnel. Foram pouco mais de três meses de intensidade vertiginosa, de erros colossais, de tumulto extra produzido pelo próprio presidente da República. O mundo inteiro está aprendendo com a pandemia, alguns países mais rapidamente do que outros.

Para se ter uma ideia da velocidade, e de como a pandemia nos pegou despreparados, um integrante da equipe econômica me disse no começo de março, quando o Brasil tinha quatro infectados, que o país seria pouco afetado. A tese era que o Brasil é fechado, do ponto de vista econômico e comercial. É, de fato, país de muitas barreiras ao comércio e pouco integrado às cadeias globais de produção. Ainda assim tem uma intensa relação com o mundo, muitos voos internacionais, e tem na China o seu maior parceiro comercial.

Talvez baseado nesse diagnóstico, o ministro Paulo Guedes chegou a falar numa entrevista à revista “Veja”, no dia 13 de março, quatro dias antes da primeira morte, que “com R$ 3, R$ 4, R$ 5 bilhões a gente aniquila o coronavírus. Porque já existe bastante verba na saúde, o que precisaríamos seria de um extra. Mas sem espaço fiscal não dá.” Na semana seguinte, no dia 17, o governo pediu ao Congresso que reconhecesse o estado de calamidade pública. O pedido foi publicado no Diário Oficial do dia 18 e aprovado no Senado no dia 20. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, propôs um “orçamento de guerra”.

O país que não tinha espaço fiscal, três meses depois está com a projeção oficial de déficit de R$ 800 bilhões em 2020. Tudo se precipitou. Os especialistas em políticas sociais alertaram que era preciso criar um programa de renda de emergência, e economistas que sempre defenderam o controle do gasto público disseram que era hora de ampliar, e muito, as despesas. O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, numa entrevista que me concedeu no dia 16, havia dito que o governo deveria decretar — como o fez no dia seguinte — calamidade, como o previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal.

O mundo inteiro foi na tentativa e erro diante desse inimigo desconhecido, invisível, contagioso. Alguns países erraram mais. Nós disputamos o campeonato do pior do mundo, infelizmente. Esse é o preço que o país está pagando pelo negacionismo do presidente.

Bolsonaro fez o que pôde para tornar a vida do país mais difícil na pandemia. Está no terceiro ministro da Saúde desde que ela chegou ao país. Entrou em rota de colisão com o então ministro da Justiça Sergio Moro, que saiu atirando. Os tiros viraram um inquérito no STF em que o presidente é investigado por tentar interferir na Polícia Federal. Participou de manifestações que defenderam o fechamento do Congresso, do Supremo, e um novo AI-5. Uma dessas em frente ao Exército em Brasília, que virou outro inquérito. Fez uma calamitosa reunião ministerial em abril, quando o país já tinha quase três mil mortos, e ele já havia demitido o primeiro ministro da Saúde. Nela, ele não mostra qualquer preocupação com a pandemia, mas sim em armar a população para a luta contra as medidas restritivas impostas por governadores. Criticou todas as regras de prevenção, exibiu-se sem máscara, subestimou os riscos da doença, tentou manipular os dados, estimulou a invasão de hospitais e na última quinta-feira disse que o número real de mortes é 40% menor, baseado em nenhuma evidência.

A revista “Economist” trouxe ontem uma reportagem dizendo que o Reino Unido tem o governo errado para esta doença. Entendo o que quer dizer. Governo faz toda a diferença. Um estudo da Economist Inteligence Unit, sobre os países da OCDE, fez um ranking do desempenho na pandemia. A Alemanha está entre os melhores países, o Reino Unido, entre os piores.

O mundo ainda não sabe o que fazer. Ontem, a Apple anunciou que voltará a fechar 11 lojas em quatro estados americanos. A China teme uma segunda onda, com o aparecimento da doença em Pequim. No Brasil, os governadores começaram a abrir a economia, com maior ou menor grau de precipitação. Alguns já recuam. O país está numa enorme crise institucional, como se não bastasse ter um milhão de infectados por um vírus que a humanidade ainda não sabe como vencer.

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