terça-feira, 2 de junho de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

• Unidade já – Editorial | Folha de S. Paulo

Iniciativas superam divergências para unir defensores da democracia e da Carta

Começa a desfazer-se a letargia da sociedade civil no isolamento imposto pela epidemia de coronavírus. A democratas cumpre erguerem-se para arrostar as repetidas agressões do presidente Jair Bolsonaro à ordem constitucional.

Multiplicam-se os manifestos em favor da democracia. Adversários eleitorais e antípodas ideológicos põem divergências e ressentimentos à parte para defender a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais contra os quais ladra uma minoria de fanáticos a levantar bandeiras extremistas.

Iniciativas como Estamos Juntos, Basta! e Somos 70 por cento ganham adesões rapidamente. Centenas de integrantes do Ministério Público Federal se insurgem contra a prostração do procurador-geral, Augusto Aras, perante os mármores do Planalto.

Pesquisas de opinião registram elevação contínua da reprovação ao presidente, com 43% dos entrevistados a avaliar seu governo como ruim ou péssimo. Rejeitam a ideia de armar seguidores nada menos que 72% dos ouvidos; 52% repudiam o aparelhamento dos órgãos de governo por militares.

Em que pesem obstáculos para mobilizar a maioria não ensandecida do país, em meio à sabotagem dos esforços para conter a mortandade da Covid-19, a opinião pública se desanuvia com a lembrança do vendaval Diretas Já, lufada que varreu a ditadura militar (1964-1985).

Urge, por exemplo, desmontar a interpretação liberticida de que o artigo 142 da Constituição daria autorização para as Forças Armadas investirem contra o Judiciário ou o Legislativo, a mando do Executivo. Estultices do gênero merecem enérgica resposta da sociedade.

O presidente e sua família cevada no baixo clero parlamentar se encontram enrascados em múltiplas frentes policiais e judiciárias, a demandar esclarecimentos.

Das rachadinhas à promiscuidade miliciana e do aparelhamento da Polícia Federal ao desmonte da capacidade de reação diante da epidemia e da devastação ambiental, proliferam as condutas suspeitas ou escandalosas sobre as quais um gabinete de ódio busca erguer cortinas de fumaça tóxica.

Se faltam votos para deslanchar uma investigação de crime de responsabilidade, essa é tão somente a situação do momento. Os manifestos são demonstração de que existem setores vigilantes.

Restam ainda os flancos abertos no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral —este com a revelação de malfeitos do exército de robôs informáticos mantidos por uma camarilha de empresários aliados.

Bolsonaro está cercado, mas o bastião da Presidência é forte. Há um caminho duro pela frente para quem se reúne em torno da Carta.

• Quadratura do centrão – Editorial | Folha de S. Paulo

67% dos eleitores, segundo Datafolha, condenam barganha desesperada de Bolsonaro

É evidente que Jair Bolsonaro busca uma espécie de quadratura do círculo ao cooptar, com cargos e verbas, parlamentares do famigerado centrão para a defesa de seu mandato —depois de uma campanha eleitoral baseada na demonização do que chama de “velha política”.

Não espanta, pois, que 67% dos brasileiros aptos a votar considerem que o presidente age mal, segundo pesquisa do Datafolha, ao negociar apoios no Congresso com as moedas do mais descarado fisiologismo. Entre eleitores de Bolsonaro, 52% pensam dessa maneira.

Na aproximação mal disfarçada com os operadores do varejo legislativo há, decerto, um cálculo de desespero. O chefe de Estado percebeu a erosão de sua governabilidade e buscou amparo onde podia.

Patrocinou, na prática, um casamento inusitado entre ala militar do governo, sempre tão ciosa de sua pureza, e o mal-afamado centrão. Todos terão de dividir postos na Esplanada brasiliense.

Os fardados promoveram uma deplorável intervenção no Ministério da Saúde, cujo resultado até aqui foi ampliar o risco de morte na pandemia e uma submissão a teses da ala ideológica que tanto odeiam.

Ao mesmo tempo, liberaram espaço para os neogovernistas na Educação, às expensas dos discípulos de Olavo de Carvalho.

Mais está por vir. Bolsonaro teme, com bons motivos, que um pedido de impeachment acabe por prosperar. Se não agora, em breve.

A tática é lógica, mas, tal e qual a cloroquina, pode ser ineficaz e embutir danos para o paciente. Bolsonaro foi eleito prometendo imolar o centrão no altar da Lava Jato.

Isso acabou. O totem da luta anticorrupção do governo, Sergio Moro, foi embora atirando. E a oferenda anunciada agora senta à mesa das benesses do Estado —isso para não citar sua lealdade porosa.

Bolsonaro tem visto sua rejeição subir, em especial no que tange à pilha de caixões que ajuda a engrossar, mas seu apoio segue estável.

Tal ambiente se mostra propenso a chacoalhadas sísmicas, como o episódio do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. Ruídos autoritários como a ameaça institucional feita pelo ministro-general Augusto Heleno demonstram a volatilidade inerente ao arranjo.

Se o governo podia ostentar a fidelidade à agenda tresloucada da campanha eleitoral, agora esse ativo se perde. Além de desqualificado aos olhos de uma parcela crescente do país, Bolsonaro pode ser tachado de traidor em sua base.

• A busca por uma ampla defesa das instituições – Editorial | O Globo

O Congresso, junto com a sociedade, precisa dar apoio ao STF, no embate pelo estado democrático de direito

A crise institucional continuou sendo impulsionada no fim de semana pelo presidente Bolsonaro na sua costumeira pajelança à frente do Palácio do Planalto, onde recepciona poucas centenas de seguidores de raiz com seus cartazes contra as instituições. Mas a crise chega às ruas. A Avenida Paulista depois de muito tempo voltou a ser coberta por nuvens de gás lacrimogênio e a reverberar o barulho das bombas de efeito moral, jogadas pela PM, para impedir agressões entre membros de torcidas de clubes de futebol, mobilizadas em alegada defesa da democracia, e bolsonaristas que se apropriaram das cores verde e amarelo e levaram para o ato a bandeira de um grupo neonazista ucraniano.

A atual crise tem características tais que até a forma como a PM agiu na Paulista gera polêmica, porque reclama-se que ela foi mais firme ao reprimir os manifestantes pró-democracia. O coronel Álvaro Camilo, secretário-executivo da PM, nega e garante que tudo será esclarecido em um inquérito. Porém, no Rio, na Avenida Atlântica, um PM foi gravado dizendo que agentes infiltrados no grupo contrário a Bolsonaro iriam confiscar e queimar as faixas dos manifestantes.

Fatos que preocupam, porque policiais são parte da base bolsonarista. O presidente fez ainda um trabalho de cooptação de militares, tendo vários deles no Ministério. No domingo, Bolsonaro mais uma vez sobrevoou de helicóptero militar a Praça dos Três Poderes, desta vez ao lado do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Significa que as Forças Armadas apoiam os arreganhos golpistas de Bolsonaro? Difícil acreditar. Consta que o ministro apenas pegou carona do Alvorada ao Planalto, a caminho de casa. Que seja.

O manifesto “Estamos Juntos”, lançado no sábado por defensores da democracia de várias correntes políticas, e que no domingo já tinha colhido mais de 100 mil assinaturas, estimula a se acreditar na viabilidade de uma grande aliança democrática, repetindo o que já aconteceu com êxito na saída da ditadura militar de 1964 a 85/88. Deve-se fazer o mesmo para evitar outra. A cada dia fica mais necessário este grande entendimento entre direita e esquerda democráticas.

O Congresso, junto com a sociedade, precisa apoiar a firmeza com que o Supremo tem atuado. A Corte deve mesmo cumprir suas funções, sem tergiversar. Em entrevista à GloboNews na noite de domingo, foi animadora a postura do ministro Gilmar Mendes diante de uma conjuntura política difícil que leva o STF a manter o Executivo nos limites do estado democrático de direito, conforme estabelece a Carta. E é preciso firmeza.

A Corte não se pronunciou sobre um habeas corpus impetrado pelo governo para que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, não prestasse depoimento sobre as agressões que fez ao Tribunal. O ministro teve de ser ouvido, e se manteve calado. A Corte ainda julgará pedido para o fim do inquérito das fake news, e assim por diante. Não há por que não cumprir a pauta.

• Flexibilização precoce poderá levar a um aumento de casos de Covid-19 - Editorial | O Globo

Mesmo com números em alta, estados e municípios começaram ontem a relaxar o isolamento

O 1º de junho marcou o início da flexibilização das regras de isolamento em vários estados, mesmo aqueles que ainda apresentam altas taxas de transmissão da Covid-19. Amazonas, Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Goiás, Espírito Santo, por exemplo, começaram ontem a retomar algumas atividades. São Paulo e Rio de Janeiro, que concentram o maior número de mortes pelo novo coronavírus no país, também ensaiam uma volta à nova normalidade. Cidades paulistas onde a doença está sob controle, como as do Vale do Paraíba, foram autorizadas pelo governador João Doria a reabrir o comércio. A capital, no entanto, permanece em quarentena até o dia 15. No Rio, o governador Wilson Witzel permitirá o retorno gradual a partir de 8 de junho. Já o prefeito Marcelo Crivella começa a pôr em prática hoje a flexibilização para a cidade.

Evidentemente, não se trata de um “liberou geral”, e isso nem faria sentido. Em quase todos os planos de flexibilização anunciados, a retomada será por fases, e em cada uma delas os estabelecimentos terão de cumprir regras sanitárias, como uso de máscaras e álcool em gel, redução da capacidade de operação, espaçamento entre os clientes etc. Esses cuidados são mesmo essenciais.

Mas preocupa que o país esteja começando a relaxar a quarentena num momento em que não há qualquer sinal de controle da epidemia. Ao contrário, os números ainda são desoladores. Embora algumas capitais, como São Paulo e Rio, apresentem tendência à estabilização — num patamar altíssimo —, a situação em boa parte dos estados ainda é de aceleração. Ontem, a Organização Mundial da Saúde (OMS) disse que a pandemia na América do Sul, onde o Brasil é o epicentro, ainda não atingiu o pico. Ou seja, o pior ainda está por vir.

Especialistas têm alertado para os riscos dessa flexibilização precoce, que, segundo eles, poderá levar a um aumento do número de casos, agravando o problema da falta de leitos. Muitos dos estados e cidades que estão relaxando as quarentenas têm mais de 90% de suas UTIs ocupadas. Por isso, é importante que regiões com diferentes índices de incidência da Covid-19 e de ocupação de leitos tenham regras distintas para a retomada das atividades.

• Algo se move – Editorial | O Estado de S. Paulo

Enquanto Bolsonaro dava demonstração de menosprezo pela democracia, grupos foram às ruas e foram publicados manifestos em defesa dos valores democráticos. O mais notável foi o caráter suprapartidário

O presidente Jair Bolsonaro voltou a participar de uma manifestação golpista em Brasília. Como um general diante de sua tropa, chegou a montar em um cavalo para saudar os camisas pardas travestidos de patriotas que o festejavam e, como sempre, empunhavam faixas em que defendiam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Na noite anterior, o punhado de golpistas armados que acampam na capital federal em apoio ao presidente fez um protesto diante do Supremo, com direito a tochas que remetiam à estética nazi-fascista.

Ou seja, tinha tudo para ser um fim de semana como outro qualquer desde que Bolsonaro e seus celerados seguidores resolveram testar a resistência das instituições ante seus arroubos autoritários, apostando que a maioria absoluta dos brasileiros permaneceria inerte. Mas algo aparentemente se moveu na sociedade.

Enquanto Bolsonaro dava mais uma de suas rotineiras demonstrações de profundo menosprezo pela democracia, alguns grupos foram para as ruas protestar contra o presidente e foram publicados diversos manifestos em defesa dos valores democráticos e republicanos. O mais notável, em todos os casos, foi o caráter suprapartidário de várias dessas manifestações.

No manifesto intitulado Estamos Juntos, por exemplo, milhares de signatários de esquerda e de direita se qualificam como “a maioria dos brasileiros” e conclamam os líderes da sociedade – em especial na política e no Judiciário – a assumir “a responsabilidade de unir a Pátria e resgatar nossa identidade como Nação”.

Outro manifesto, de profissionais do Direito, se intitula Basta!. Afirmam seus signatários que Bolsonaro “exerce o nobre mandato que lhe foi conferido para arruinar os alicerces de nosso sistema democrático, atentando, a um só tempo, contra os Poderes Legislativo e Judiciário, contra o Estado de Direito e contra a saúde dos brasileiros”. O manifesto diz que “é preciso dar um basta a essa noite de terror”.

Uma terceira nota, assinada pelas principais associações de juízes e procuradores do País, pede que haja “cautela e ponderação” de todos os que “exercem parte do poder estatal”, para que “a democracia, construída a partir de esforços de gerações, possa ser resguardada e aprimorada”. Adverte, contudo, que qualquer “ato que atente contra o livre exercício dos Poderes e do Ministério Público” será objeto de “imediata e efetiva reação institucional”.

Essa reação já está acontecendo. O próprio Bolsonaro, em mensagem nas redes sociais, enumerou todas as medidas tomadas pelo Judiciário contra si próprio e contra seu governo, e declarou: “Tudo aponta para uma crise”. Para o presidente, portanto, há “crise” quando o Judiciário e o Congresso o impedem de governar sem qualquer limite institucional – visão típica de quem “odeia a democracia”, nas duras palavras do ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal.

A exemplo dos manifestos da sociedade civil, o ministro Celso de Mello exortou seus interlocutores a “resistir à destruição da ordem democrática”. Para ilustrar esse risco, deu como exemplo a ascensão do regime nazista – que chegou ao poder na Alemanha pela via democrática e, em seguida, arruinou a democracia.

O primeiro passo para evitar essa ruptura é fazer valer o que está na lei. A atitude do Judiciário de investigar as manifestações antidemocráticas bolsonaristas – que, como salientou o ministro do STF Gilmar Mendes, “não são apenas inconstitucionais, mas também se revelam criminosas e por isso têm que ser repudiadas e punidas” – é apenas um exemplo da disposição das instituições sadias de frustrar aventuras golpistas.

Outro passo fundamental é superar momentaneamente as diferenças políticas em favor da preservação da democracia ante a ameaça real representada pelo bolsonarismo. A luta pelo poder deve agora ficar reservada para o período eleitoral. Ante o múltiplo desastre que o Brasil enfrenta – a pandemia de covid-19 e um presidente incapaz de governar e tomado de devaneios liberticidas –, é preciso, como diz o manifesto Estamos Juntos, que os líderes políticos “deixem de lado projetos individuais de poder em favor de um projeto comum de País”. Que assim seja – do contrário, será a treva.

• A chaga norte-americana – Editorial | O Estado de S. Paulo

A violência racial é o estopim para que irrompam tensões jamais superadas

O racismo nos EUA é uma chaga aberta que nem a eleição do primeiro presidente negro na história do país, o democrata Barack Obama, foi capaz de cicatrizar. Todos os dias, na nação que representa a quintessência da democracia moderna, negros recebem um tipo de tratamento que normalmente não seria dado aos brancos nas mesmas situações. Esta realidade ganha contornos dramáticos quando envolve a polícia. De tempos em tempos, um caso particular de violência policial contra negros é o estopim para que irrompam tensões que, na melhor das hipóteses, estavam adormecidas, jamais superadas.

Há cerca de uma semana, o mundo civilizado assistiu em choque a mais um desses episódios, o brutal assassinato de George Floyd em Minneapolis, no Estado de Minnesota. Floyd, um homem negro de 46 anos, foi detido por suspeita de ter passado uma nota falsa de US$ 20 numa loja de conveniência. Desarmado, algemado e no chão, sem oferecer qualquer resistência, foi asfixiado pelo policial Derek Chauvin à luz do dia, diante de dezenas de testemunhas, inclusive a que gravou o vídeo infame. Durante sete minutos de agonia, com o joelho do policial comprimindo o seu pescoço contra a sarjeta, George Floyd suplicou 11 vezes antes de desfalecer e, enfim, ser levado a um hospital, onde chegou morto.

A crueldade da morte de George Floyd desencadeou uma onda de protestos como há muito não se via nos EUA. Jornalistas americanos observam que a dimensão das manifestações ocorridas em cidades como Minneapolis, Nova York, Los Angeles, Las Vegas, Miami, Washington, Chicago, Filadélfia e Atlanta, entre outras, só é comparável às havidas em 1968, após o assassinato do reverendo Martin Luther King Jr., um dos grandes patronos da igualdade racial no país no século 20. Prédios e carros da polícia foram incendiados, lojas saqueadas e espaços públicos e privados foram depredados. Decretos de toque de recolher não passaram de mera formalidade, ninguém os respeitou. Em 11 dos 50 Estados americanos a Guarda Nacional teve de ser acionada. Nem a prisão de Derek Chauvin num presídio de segurança máxima aplacou a ira dos manifestantes, o que sugere que há outras questões subjacentes à tensão racial a motivar os protestos.

Uma dessas questões, seguramente, é o longo histórico de decepções da população negra em relação à atuação do sistema jurídico-penal americano em casos como o de Derek Chauvin. Para começar, o policial foi denunciado por homicídio em terceiro grau, ou seja, homicídio culposo. É de indagar se alguém que joga todo o peso de seu corpo sobre o pescoço de outra pessoa não imagina que pode matá-la. Falar em “imprudência” ou “imperícia” nesse caso, que o mundo inteiro viu como se desenrolou, só serve para gerar justa insatisfação da população. Além disso, as penas aplicadas pela Justiça em casos semelhantes, em geral, são bastante brandas em relação à gravidade dos crimes cometidos pelos policiais, sempre brancos.

Outra questão importante a ser considerada nessa nova onda de protesto é a profunda desigualdade econômica entre brancos e negros. Em Minneapolis, famílias negras têm renda anual equivalente a menos da metade da renda de famílias brancas. Além disso, uma sucessão de leis ao longo dos anos segregou os negros em áreas periféricas da cidade, o que só ampliou o fosso racial. A situação dos negros é ainda mais discrepante em outras cidades do país.

Somem-se a isso os efeitos sanitários e econômicos da pandemia de covid-19, particularmente mais severos sobre as camadas mais pobres da população americana. Lá como cá, guardadas as devidas proporções, os negros são maioria entre os desvalidos. Mais pobres, têm menos acesso a tratamento de saúde. Além disso, estão mais sujeitos a empregos que não lhes garantem uma renda segura para atravessar com relativa tranquilidade o período de isolamento social.

Tendo de enfrentar toda sorte de barreiras sociais, políticas e econômicas cotidianamente, a população negra ainda precisa deixar claro o óbvio em pleno século 21: a vida de um negro não é descartável, importa tanto quanto a de qualquer pessoa, seja nos EUA, seja no Brasil ou em qualquer lugar.

• Nas contas, um teste de seriedade – Editorial | O Estado de S. Paulo

Déficits crescem em todo o mundo, mas é preciso ter bons motivos para gastar

Em rápido crescimento, a epidemia do coronavírus, o déficit fiscal e a dívida pública seguem trajetórias semelhantes e assim devem seguir por algum tempo. Mas o déficit e a dívida poderão continuar aumentando quando o surto da doença tiver amainado, se o governo relaxar o controle de suas finanças. O risco se agrava quando o presidente Jair Bolsonaro negocia com o Centrão postos importantes da administração federal. Com as negociações, a gestão de orçamentos multibilionários é entregue a pessoas indicadas por um grupo conhecido por seu fisiologismo. Mesmo sem esse risco o desafio já é enorme.

Pelas últimas previsões oficiais, o déficit primário do governo central chegará neste ano a R$ 675,7 bilhões, ou 9,4% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado para 2020. Com o déficit dos governos subnacionais e o das empresas federais, o resultado primário do setor público será um saldo negativo de R$ 708,7 bilhões (9,9% do PIB). No ano passado o número em vermelho ficou em R$ 61 bilhões (0,9% do PIB).

Mas o problema é político e moral, antes de ser financeiro ou aritmético. Não basta olhar os números. É preciso levar em conta a destinação do dinheiro gasto e as motivações dos benefícios tributários. Por enquanto as explicações são respeitáveis.

Em abril, a receita líquida do governo central foi 35,6% menor que a de um ano antes, descontada a inflação, e a despesa foi 44,7% maior. A arrecadação foi afetada principalmente pela redução e pelo diferimento de tributos, enquanto o gasto foi ampliado por medidas de combate à pandemia e de seus efeitos econômicos e sociais. Também houve, naturalmente, o efeito da redução da atividade.

O resultado foi um déficit primário, isto é, sem a conta de juros, de R$ 92,9 bilhões nas finanças do governo central, segundo relatório do Tesouro. Um ano antes tinha havido superávit primário de R$ 6,5 bilhões, em valores da época. As despesas de enfrentamento da covid-19 consumiram R$ 59,4 bilhões, incluídos R$ 35,8 bilhões de auxílio emergencial a grupos sociais mais vulneráveis.

Discute-se, em Brasília, se programas emergenciais desenhados para cumprimento até junho serão prorrogados. Se isso ocorrer, o déficit primário e a dívida poderão aumentar bem mais do que já se estimou. Não se deve menosprezar a advertência. Se houver bom motivo para a prorrogação dos gastos ou benefícios excepcionais, será conveniente recalibrar o programa de ajuste seriamente, talvez planejando compensações orçamentárias. O advérbio “seriamente” é essencial e exclui a consideração de objetivos pessoais e familiares do presidente da República.

Um cenário mais amplo aparece no relatório do Banco Central (BC) sobre o conjunto do setor público. Os saldos correspondem às necessidades de financiamento, enquanto aqueles apresentados no relatório do Tesouro expressam a diferença entre receitas e despesas. Segundo o BC, o governo central fechou o mês de abril com déficit primário de R$ 92,2 bilhões. O déficit geral do setor público, incluídos os governos subnacionais e as empresas federais, atingiu, também no conceito primário, R$ 94,3 bilhões.

Somados os juros, o chamado resultado nominal foi negativo em R$ 115,8 bilhões. No ano, o saldo nominal foi um déficit de R$ 225,7 bilhões, equivalente a 9,6% do PIB. Em 12 meses, o resultado negativo chegou a R$ 545,7 bilhões, ou 7,5% do PIB, com alta de 1,2 ponto porcentual em relação ao registrado até março.

Com a ampliação do déficit nominal, a dívida bruta do governo geral (três níveis) bateu em R$ 5,82 trilhões e passou de 78,4% em março para 79,7% do PIB. O objetivo de manter a relação abaixo de 80% já havia sido abandonado. Na última revisão de receitas e despesas, o Tesouro elevou a projeção para 93%, mas no mercado já se encontram estimativas de 100%. As contas públicas estão piorando em todo o mundo. Mas o mercado julgará os governos de acordo com a seriedade e a competência demonstradas em suas políticas. Isso afetará as decisões de financiamento e de investimento. O presidente deveria pensar nisso.

• Cenário de incertezas pune o mercado de trabalho – Editorial | Valor Econômico

Há o receio de que a falta de visibilidade em relação à recuperação da economia a curto prazo leve a novas demissões

A recuperação do mercado de trabalho será um dos maiores desafios da economia brasileira após a pandemia do coronavírus. A tarefa não será fácil diante do desastre registrado até agora. Dados divulgados na semana passada deram uma dimensão do estrago provocado pela retração da economia. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) informou que, só em abril, foram fechados 860,5 mil postos formais de emprego, um recorde na série iniciada em 1992. Somados aos 240,7 mil cortados em março, o total perdido desde a pandemia chega a 1,1 milhão de postos. Já a Pnad Contínua, do IBGE, calculou a perda de 4,9 milhões de ocupações no trimestre de fevereiro a abril.

Os números refletem o tombo de 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro trimestre, na comparação com o quarto trimestre de 2019, divulgado pelo IBGE na semana passada. A expectativa é que a economia tenha encolhido mais ainda em abril e maio e deve fechar o ano com retração de 7% a 8%, sob o efeito negativo não só da pandemia, mas também das incertezas políticas, que inibem os investimentos e o consumo. Disso resultam previsões negativas também para o mercado de trabalho.

O emprego foi mais afetado até agora no comércio e serviços em geral, segundo o Caged, cujos dados voltaram a ser divulgados pela primeira vez no ano. Mas também diminuíram na indústria e construção. O único foco de contratações foi o setor público. Já a Pnad Contínua do IBGE expõe a fragilidade dos informais, os mais atingidos, com 3,7 milhões de postos perdidos, ou 76% do total.

A taxa de desocupação total subiu de 11,2% no trimestre terminado em janeiro para 12,6%, com um total de 12,8 milhões de desempregados. É a pior taxa desde o primeiro trimestre do ano passado (12,7%), mas seria ainda maior não fosse o aumento do número de pessoas que deixaram de procurar emprego em consequência do isolamento social ou da convicção de que as empresas não estão fazendo contratações diante da retração da economia.

Economistas do mercado financeiro estimam que a taxa de desemprego estaria ao redor de 16% se a população economicamente ativa (PEA) estivesse no patamar do início do ano. Mas a situação econômica e sanitária causou a retração das pessoas. O quadro pode ser medido pela relação entre a PEA e a população em idade ativa (PIA), que engloba as pessoas com 15 anos ou mais. Essa relação diminuiu de 61% em janeiro para 59%.

Os números também seriam piores não fosse a legislação excepcional estabelecida pelo governo na Medida Provisória (MP) 936, de 1 de abril, aprovada pela Câmara dos Deputados na semana passada, na véspera de perder a validade, o que colocaria em risco milhões de arranjos feitos. Estima-se que 8,2 milhões de empregos foram mantidos com acordos de suspensão de contratos de trabalho e redução da jornada e salários, regulamentados pela MP 936, que trata do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda (Bem). Agora, a MP segue para o Senado. Se houver alterações, volta para a Câmara, antes de seguir para sanção ou veto presidencial. De toda forma, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), prorrogou a MP. Assim, os senadores têm mais 60 dias de prazo.

A MP 936 saiu da Câmara com regras mais favoráveis às empresas, que pagarão menos impostos até o fim de 2021, prazo em vai valer a desoneração da folha de pagamentos. Já os empregados não tiveram benefícios ampliados uma vez que os deputados não aprovaram proposta do relator de ampliar o valor máximo pago pelo governo, de R$ 1.813 para R$ 3.135. O aumento custaria R$ 22 bilhões, de acordo com o Ministério da Economia.

Um ponto positivo foi a extensão do programa além dos três meses iniciais, incluída no parecer. O presidente poderá aumentar o prazo dos acordos de redução de jornada e suspensão de contratos por decreto, desde que não ultrapasse o período de calamidade pública - até 31 de dezembro de 2020. Dado que a economia ainda demorará para se recuperar, a prorrogação da validade da MP é positiva.

Apesar da legislação excepcional e mais flexível, não se espera volume significativo de novas adesões, mas a manutenção dos acordos já feitos. Receia-se que a falta de visibilidade em relação à recuperação da economia a curto prazo leve a novas demissões. A previsão para o mercado de trabalho é de aprofundamento da crise. Maio trará números ruins e já se fala em mais de 6 milhões de desempregados até agosto.

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