terça-feira, 21 de julho de 2020

100 anos de Florestan Fernandes e Celso Furtado: como eles pensaram e ainda ajudam a pensar o Brasil

Sociólogo e economista colocaram suas ideias à disposição de um país que queriam livrar do subdesenvolvimento

Ruan de Sousa Gabriel | O Globo

SÃO PAULO – Em 4 de junho de 1987, o economista Celso Furtado (1920-2004), à época ministro da Cultura, anotou em seu diário que o sociólogo e deputado constituinte Florestan Fernandes (1920-1995) vivia “o drama do intelectual que veste a camisa do político: necessidade de radicalizar verbalmente e de acomodação à prática”. Ele mesmo um intelectual político, Furtado concluiu: “São o que há de melhor em nossa arena política.”

— Eram dois intelectuais maduros, com passagens pelo exílio, dando suas contribuições no momento em que o país trocava de pele ao ganhar uma nova Constituição — diz a tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva de Furtado e organizadora de seus “Diários intermitentes” (Companhia das Letras).

Fernandes e Furtado nasceram há cem anos, em julho de 1920, com apenas quatro dias de diferença: um no dia 22 e outro no dia 26. Furtado veio de uma família de classe média em Pombal, na Paraíba. Antes de enveredar pela economia, estudou Direito e lutou com os pracinhas brasileiros na Segunda Guerra. O paulistano Florestan, filho de empregada doméstica, nunca conheceu o pai. Trabalhou como engraxate e garçom antes de ingressar como aluno, e depois como professor, na USP. Apesar das diferenças, ambos se impuseram a “tarefa ingrata” (palavras de Furtado) de pensar o Brasil.

Autor de livros como “Formação econômica do Brasil” (1959) e “Criatividade e dependência na civilização industrial” (1978), Furtado revolucionou a teoria ao propor que o subdesenvolvimento não era uma “etapa” do desenvolvimento capitalista, mas uma posição das economias periféricas frente às centrais e que não seria superado apenas pela livre atuação do mercado. Já Fernandes, em livros como “A integração do negro na sociedade de classes” (1965) e “A revolução burguesa no Brasil” (1975), revelou as estruturas históricas e sociais que impediam (e ainda impedem) o país de ingressar de vez na modernidade.

— Ao perceberem que teorias estrangeiras não explicavam a persistência do nosso atraso, eles se debruçaram sobre nossa história para explicar como se formaram nossas estruturas sociais e suas lógicas de funcionamento — afirma a cientista política Vera Cepêda, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). — Ambos produziram obras de grande envergadura e orientadas pela ideia de que a ciência não serve apenas para explicar o mundo, mas também para transformá-lo.

Teoria na prática
A Lei Sarney, primeira legislação federal de incentivo à cultura, foi aprovada quando Furtado era ministro. Defensor do ensino público, Florestan ameaçou abandonar a Constituinte se seu partido, o PT, não o indicasse para a Comissão de Educação e Cultura. Para vencer resistências às suas pautas “de esquerda”, ele às vezes passava suas propostas a colegas mais conservadores — que conseguiam aprová-las. E não perdia a oportunidade de alfinetar Furtado, chamado de estruturalista, social-democrata e, naquele momento, em um governo do PMDB:

— Num debate em que os dois chegaram a um impasse, o Florestan terminou dizendo para o Celso: “É que o senhor não é marxista, mas eu sou.”

Segundo Alexandre Barbosa, professor de História Econômica e Economia Brasileira da USP, Furtado e Florestan ocupavam “cidadelas” diferentes. O economista era um “intelectual orgânico do Estado”. Como funcionário da Comissão Econômica para a América (Cepal) da ONU, criador da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) com Kubitschek ou ministro do Planejamento de João Goulart, Furtado avaliava quais eram os consensos políticos necessários para superar o desenvolvimento. Já o sociólogo, um “intelectual crítico da academia”, questionava se a industrialização capitaneada pelo Estado não reforçava o poder das elites em vez de favorecer as classes populares.

O golpe de 1964 exilou ambos de suas “cidadelas”. Furtado foi um dos primeiros a perder seus direitos políticos; partiu primeiro para os EUA e depois para a França, onde lecionou. Fernandes foi aposentado compulsoriamente da USP em 1969 e, por alguns anos, deu aulas nos EUA e no Canadá. Até o final dos anos 1960, os dois trocaram cartas. Em 1973, de passagem pelo Brasil, Furtado compareceu ao casamento da filha de Fernandes.

— Lembro do meu pai brincando: “Chegou Celso Furtado, ministro da Economia do Brasil”e dos dois se abraçando — conta o jornalista Florestan Fernandes Jr.

Fundamentais e atuais
A ditadura aproximou a produção intelectual dos dois.

— O golpe impôs novos desafios, aos quais eles vão responder não com uma ruptura com o que pensavam anteriormente, mas com uma radicalização da crítica e, no caso de Fernandes, da atuação política — diz o cientista social Bernardo Ricupero, organizador das obras de Fernandes que começam a ser publicadas pela editora Contracorrente.

Furtado percebeu que o projeto de desenvolvimento no qual sua geração se engajara fora interrompido. Fernandes denunciou a “autocracia burguesa” que determinaria as relações entre o Estado e a sociedade brasileiros até mesmo em períodos democráticos.

Com a redemocratização, os dois seguiram para Brasília e, um como ministro e outro como deputado, esforçaram-se para pôr suas ideias a serviço da construção de um país mais justo. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, membro da Assembleia Constituinte, discípulo de Florestan e também definido por Furtado como “intelectual político”, costuma dizer que eles eram “trabalhadores incansáveis”.

Todos os acadêmicos citados neste texto concordam que as ideias da dupla centenária ainda nos ajudam a entender (e a pensar em como superar) nossos impasses econômicos, políticos e sociais.
— Não é para ler Furtado à procura de uma política econômica, mas para entender as possibilidades e limitações de uma economia como a brasileira. Ele e Fernandes criaram métodos e categorias que podemos aprimorar para entender o presente — diz Barbosa, da USP. — Não dá para entender o desenvolvimento ou a estagnação do Brasil de hoje sem esses dois autores.

Peça celebra centenário
Florestan Fernandes fazia aniversário quatro dias antes do crítico literário Antonio Candido (1918-2017), seu colega na USP e amigo da vida toda. Os dois se cumprimentavam com um beijo no rosto, o que era pouco comum entre os homens dos anos 1950 e 1960. A vida toda, eles trocaram cartas, desde que Candido era um jovem crítico que publicava seus textos na imprensa e Fernandes, seu leitor, estudava ciências sociais e reclamava do preconceito que sofria por ser um dos poucos alunos pobres da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

A extensa correspondência dos dois intelectuais, e também outros de seus textos, inspiraram a peça “Vicente e Antonio: a história de uma amizade”, escrita pelo dramaturgo Oswaldo Ramos Mendes Filho. A peça, que não pode estrear por conta da pandemia de Covid-19, será exibida na próxima quarta-feira (22), centenário de Fernandes, às 20h, nos canais do YouTube da TV Sesc, da Casa do Saber, da. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e do UOL.

Mendes Filho, que também interpreta o Candido maduro, e os atores Caetano O’Maihlan Rodrigues de Oliveira e Silva (Candido jovem), Walter Breda de Souza (Fernandes maduro) e José Augusto N. Zacché (Fernandes jovem) gravaram uma leitura dramática de "Vidente e Antonio" no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, em São Paulo. A leitura respeitou o distanciamento social e foi dirigida por Eduardo Tolentino (primo de Candido).

– Não é uma peça sobre teoria, mas sobre dois seres humanos com suas frustrações, alegrias e utopias – diz Florestan Fernandes Jr.

Espera: por que o título é “Vicente e Antonio” se os nomes deles eram Florestan e Antonio?

– Minha avó era mãe solteira e chamou meu pai de Florestan em homenagem a um amigo dela, um motorista alemão que a ajudou muito. Florestan é o nome de um personagem da ópera “Fidélio”, de Beethoven. Os patrões da minha avó achavam que o filho da empregada não podia ter esse nome e o chamavam de Vicente – conta Fernandes Jr. – Minha irmã dedicou sua tese de doutorado “ao Vicente e ao Florestan”, “ao primeiro por ter feito tudo par poder ser o segundo”.

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