quarta-feira, 8 de julho de 2020

Cristiano Romero - A difícil arte de romper com passado

- Valor Econômico

O problema da pobreza não atendida por programas sociais está nos grandes centros e capitais

Na Ilha de Vera Cruz, impera a tradição de nunca se romper com o passado que nos condena ao atraso, inclusive, na transição de regimes, governos e crises. Não se muda totalmente o rumo das coisas nem quando a situação exige. E, por essa razão, torna-se sempre mais difícil avançar. Períodos de continuidade do que está dando certo são raros.

A crise da dívida, em 1982, mostrou que o regime de substituição de importações foi à breca. O modelo se esgotou porque, devido à escalada dos juros no mercado internacional, tornou-se impossível honrar o pagamento da dívida externa, que na década de 1970 saltou de US$ 6 bilhões para aproximadamente US$ 100 bilhões.

O governo federal perdeu a capacidade de bancar, desde a crise da dívida, os investimentos que vinha fazendo de maneira massiva.

Quem viveu naqueles anos pôde perceber a degradação gradual e irretratável da infraestrutura (estradas, ferrovias, aeroportos, portos) e dos serviços públicos desde então. No fundo, aindas vivemos em função daquele legado.

Equilibrar o balanço de pagamentos, isto é, gerar divisas internacionais para fazer frente ao pagamento da dívida externa, tornou-se mais importante do que combater a inflação naquele momento. É que, para dar rapidamente competitividade às exportações e, assim, gerar saldos positivos na balança comercial, a saída era promover maxidesvalorizações da moeda nacional frente ao dólar.

Como dizia o ministro da Fazenda do governo Geisel (1974-1979), a inflação aleija, mas o câmbio mata. Na prática, a desvalorização da taxa de câmbio reduz o salário real de quem trabalha, o poder de compra diminui, uma vez que ficamos todos mais pobres em relação ao mundo. Por conseguinte, diminui os custos de produção das empresas. O efeito colateral danoso é o aumento da inflação.

Os militares não tiveram muito tempo para fazer algo e, por isso, passaram o bastão aos civis, em março de 1985, com inflação alta e disparando e debilidade no balanço de pagamentos. A Nova República, cujo primeiro presidente fora um prócer da ditadura _ José Sarney, ex-governador do Maranhão _, foi inaugurada sem operar mudanças no modelo que vinha dando errado. Um importante protagonista daquele momento na equipe econômica contou a esta coluna o que aconteceu.

"O acordo com o FMI, de 1983, e os empréstimos setoriais do Banco Mundial, negociados e nunca concluídos, apontaram sérias distorções institucionais no campo econômico do Estado brasileiro. Das intensas discussões de então, das quais participei, surgiu a percepção de mudanças necessárias", relata Maílson da Nóbrega, que comandou o Ministério da Fazenda nos últimos dois anos do governo Sarney.

Antes, entre 1983 e 1984, Maílson coordenou a realização de amplo estudo para examinar a situação das finanças públicas federais. Em decorrência daqueles estudos, adotaram-se medidas relevantes como a extinção da “conta-movimento” do Banco do Brasil, o fim das atividades de fomento do Banco Central e a eliminação do Orçamento Monetário. Também em consequência daquele trabalho, foi criada a Secretaria do Tesouro Nacional, entre outras ações modernizantes.

Foi um avanço, sem dúvida. Imagine-se o seguinte: a conta-movimento permitia que o governo dispusesse de recursos financeiros, a qualquer momento e fora do orçamento, do caixa de um banco estatal. O BB, portanto, financiava o Tesouro. Dilma Rousseff sofreu impeachment por muito menos... Outra jabuticaba era a atuação do BC como agência de fomento para a agricultura. Em ambos os casos, os instrumentos fomentavam, na verdade, a explosão da inflação.

No setor externo, ficaram evidentes as distorções criadas pelo acirramento dos controles de importações e o efeito negativo da política de substituição de importações (levada então ao extremo) sobre a concorrência, a inovação e a produtividade. Daí, os estudos, revela Maílson, para rever a estrutura tarifária, à época plena de redundâncias e outras distorções.

"Esse trabalho insano, realizado de forma competente pela então Comissão de Política Aduaneira, forneceu a convicção de que chegara a hora de iniciar um processo cuidadoso e unilateral de redução dos escandalosos níveis de direitos de importação (alguns acima de 100%). Desse trabalho, adveio a primeira ação de abertura da economia em 1988, seguida da segunda em 1989. A tarifa média caiu para pouco mais de 30%, ainda elevadíssimas, mas muito inferiores às praticadas."

Um passo adicional foi a eliminação da lista de importações suspensas (sim, havia isso), que abrangia cerca de 3.500 produtos. Mesmo que o importador se dispusesse a pagar as altas tarifas, era proibido emitir a guia de importação. Como parte do acordo não concluído com o Banco Mundial, o Ministério da Fazenda se comprometeu a eliminar a lista em um prazo.

"Em janeiro de 1989, a lista estava em 500 produtos, todos muito sensíveis. Naquele mês, recebi o então diretor da Cacex, Namir Salek, que me propôs suspender a medida. Os argumentos eram fortes: fim de governo, baixa confiança, nível reduzido de reservas internacionais. A eliminação dessas 500 posições poderia, na visão dele, disparar um processo de importações que consumiriam as modestas reservas internacionais e piorariam a crise, que abrangia dificuldades no balanço de pagamentos. Concordei com Salek e até hoje me arrependo. Estou convencido de que o seu cenário pessimista não se materializaria. Não havia demanda para tanto."

Em 1986, uma equipe de jovens economistas lançou um engenhoso plano para estabilizar a inflação. Mas, como vivíamos ainda o pleno funcionamento do modelo de substituição de importações, que fechava as fronteiras comerciais do país às importações, o plano não tinha como dar certo. Sem expor os preços domésticos à competição internacional, a inflação ficaria em níveis comportados por muito tempo.

Fernando Collor de Mello venceu a eleilção de 1989, com o discurso de uma agenda liberalizante. Por muito tempo, atribuiu-se a ele a novidade. “As ideias liberais que Collor abraçou já estavam em discussão desde os anos iniciais da crise da dívida externa”, observa Mailson da Nobrega.

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