sexta-feira, 10 de julho de 2020

Dora Kramer - O velho anormal

- Revista Veja

Como Bolsonaro reagirá se os acenos de paz não surtirem o efeito desejado?

Não é nada dito, escrito ou sacramentado, mas dá para sentir no ambiente um quê de crise de abstinência com a nova fase do presidente da República que completaria um mês dentro alguns dias não fosse a volta dele ao velho normal quando a Covid-19 o pegou: infringiu medidas de prevenção, ofendeu a saúde alheia, fez propaganda enganosa de medicamento e outra vez foi arrogante no afã de se mostrar como um ser humano acima dos comuns.

Ainda assim permanece no ar um aroma de desagrado com a privação daquele combustível tóxico. A coisa é de parte a parte. Os devotos de Jair Bolsonaro se remoem ao pé do altar aos muxoxos, obrigados a desligar o modo gritaria. Os militantes do lado oposto mal disfarçam a torcida pela volta das exorbitâncias do capitão, a fim de recuperar o oxigênio necessário ao funcionamento da dinâmica do revide permanente.

Os demais, creio que a maioria, quedam-se entre aliviados e desconfiados da durabilidade da pele de cordeiro que ganha alguma sobrevida devido ao isolamento forçado por obra do caráter igualitário do vírus. Bolsonaro não estará impedido de aprontar via internet. Terá mais tempo de sobra para isso. Mas pelo menos não ficará zanzando por cercadinhos e cercanias distribuindo gotículas infectadas a quem se dispõe ou é obrigado por dever de ofício a privar da proximidade presidencial.

Um alento. Insuficiente, porém, para uma reabilitação. Seja para recuperar a confiança do público fora do nicho dos 15% de fiéis, seja para reparar os prejuízos causados pelo estilo espalha-brasas. Sendo perigosa e até ingenuamente otimista, digamos que o presidente venha a aderir de forma permanente a uma relativa moderação.

Estarão resolvidos os problemas desnecessariamente criados para o país, para a reputação dos alinhados ao pensamento da direita e para os planos do próprio presidente de sobreviver a mais de um mandato? Nem de longe bastam modos mais contidos.

Bolsonaro foi tão fundo que, por mais novo que seja o normal pós-pan¬demia, ele já terá deixado um legado difícil de ser refeito enquanto no poder perdurar a assombração do espírito do velho anormal. Se estiver mesmo interessado na mudança, o presidente deve saber que o trabalho de mudança nem começou.

Etapa importante a ser superada seria o teste da reação sobre os efeitos dos acenos amigáveis aos Poderes Legislativo e Judiciário. Como reagirá se, e quando, o andamento das investigações das quais ele e seus filhos são objetos não for o esperado e por isso não se considerar devidamente recompensado pelo bom comportamento?

Qual das duas versões de si o país verá caso o Centrão não lhe devolva em votos os cargos concedidos? O que fará se o Congresso sob o comando de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre seguir na toada de independência adotada nesta legislatura para se contrapor à ofensiva de desmoralização da Casa?

Considerando que a estrutura do pensamento bolsonarista continua em vigor e não muda pelo fato de o presidente ter sido compelido a trocar de figurino, o mais provável é que Bolsonaro retorne à velha anormalidade antes de compreender que, uma vez apertada, a pasta de dente não retorna ao tubo. As ilegalidades serão julgadas e, a depender, condenadas. As animosidades cultivadas no campo político o fazem colher desconfiança.

A palavra de Bolsonaro não está valendo meio real furado e seus atos, mesmo depois da baixada de bola no tom do atrito, não recomendam precipitação na assinatura de tratados de paz. Demitiu Abraham Weintraub, mas deu guarida ao plano de fuga para os Estados Unidos. Sinalizou disposição de escolher um titular para a pasta da Educação levando em conta o critério do notório saber na área, mas deixou-se enredar um bom tempo por disputas de grupos que pouco ou nada tinham a ver com qualificação. Logo ele, um adepto das afirmações retóricas de autoridade.

O chamado gabinete do ódio continua a operar, ainda que de modo mais discreto. Não se fala em desmontar o bunker da sem-cerimônia no Itamaraty, tampouco se nota alguma intenção de desmontar a bomba armada no Meio Ambiente para explodir o arcabouço de preservação montado ao longo de anos.

E por que isso? Porque não é obra de Salles, Araújo nem de Carvalho. A ela se dá o nome de Jair Bolsonaro, que, enquanto no Planalto estiver, será com um passo à frente e dois atrás que o Brasil caminhará. Até se convencer de que urna não é penico.

Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695

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