quinta-feira, 9 de julho de 2020

Ricardo Abramovay* - Amazônia, protagonista da bioeconomia

- Valor Econômico

Interromper a devastação é o ponto de partida para incluir a Amazônia no radar dos investimentos em bioeconomia

As florestas tropicais estão ausentes da mais consagrada literatura científica e de políticas públicas sobre bioeconomia. As Academias de Ciências, de Engenharia e de Medicina dos EUA acabam de publicar um relatório mostrando que a bioeconomia corresponde a 5% do PIB americano, que a competição global em torno das conquistas tecnológicas da área se intensifica e que os dispositivos da revolução digital estão fazendo da bioeconomia uma das fronteiras científicas mais importantes para o desenvolvimento sustentável. Mas é em vão que o leitor procurará no texto alguma referência às florestas tropicais.

O relatório do Conselho Alemão de Bioeconomia sobre as estratégias de bioeconomia ao redor do mundo localiza 50 países já dotados de planos para o setor. Mas quando se trata de florestas, a ênfase é na produção de biomassa para substituição de energias fósseis ou para a elaboração de novos materiais, sobretudo nos países de clima temperado. Mesmo no trabalho recente da Cepal, “Towards a Sustainable Bioeconomy in Latin America and the Caribbean”, as florestas tropicais não são decisivas na bioeconomia sustentável.

Para os nove países em cujos territórios encontra-se a maior floresta tropical do planeta - e sobretudo para o Brasil - esta ausência só pode ser tratada como um paradoxo. Pior, como trágica anomalia. A Amazônia possui 40% dos remanescentes de floresta tropical no mundo e 25% da biodiversidade terrestre, com 40 mil espécies de plantas. Sua rede fluvial (a maior do planeta), concentra mais espécies de peixes que qualquer outro sistema de rios. O carbono que ela armazena é equivalente a mais de dez anos das emissões globais de gases de efeito estufa.

Não basta impedir sua destruição, embora este seja o ponto de partida para que suas gigantescas riquezas sejam aproveitadas. Os países onde está o epicentro científico e tecnológico da bioeconomia global (Estados Unidos e Alemanha) possuem centros de pesquisa, empresas, movimentos sociais, organizações financeiras, em suma, uma rede diversificada de atores voltada a encontrar soluções para substituir energias fósseis e moléculas sobre as quais vão se apoiar algumas das mais notáveis inovações do Século XXI em alimentação, energia e produção de materiais.

Interromper a devastação, respeitar a cultura material e espiritual dos povos da floresta é apenas o ponto de partida para enfrentar um desafio maior que é a inclusão da Amazônia no radar das iniciativas e dos investimentos em bioeconomia. Esta inclusão não é importante apenas para a Amazônia e sim para o Brasil, pois representa a oportunidade de valorizar ativos dos quais o restante do mundo não dispõe e, por aí, reduzir a distância que nos separa da inovação científica e tecnológica global.

A discussão pública sobre este tema ganhou novo ímpeto com os artigos publicados pelo ministro Luís Roberto Barroso em co-autoria com a professora Patrícia Perrone Campos Mello na “Folha de São Paulo” e na “Revista de Direito da Cidade”. O debate foi enriquecido pela carta pública que Denis Minev dirigiu a Barroso e Campos Mello1. Denis Minev conhece a Amazônia não só por estudá-la e nela ter exercido cargos públicos, mas por dirigir hoje uma das mais importantes redes de varejo do interior da região, a Bemol e por ter atuado como “investidor anjo” em diversos projetos.

Neste debate, não se trata de polir a “imagem” da Amazônia, como se houvesse recurso publicitário capaz de apagar o que os dados da devastação revelam. Trata-se sim de estabelecer as premissas de uma verdadeira estratégia para que ciência, tecnologia, informação e conhecimento sejam os vetores do uso dos recursos na região. O primeiro passo neste sentido consiste em levar a ciência a sério.

Como diz a carta de Minev, o mais importante centro de pesquisa da região, o Inpa, tem orçamento de R$ 50 milhões. Só a Universidade de Stanford conta com recursos de US$ 6,8 bilhões. O Brasil possui doutores vivendo na Amazônia e centros de pesquisa que poderiam fazer avançar muito o conhecimento e a utilização prática da sua biodiversidade, com base na melhor ciência. Mas não existe uma estratégia nacional nesta direção. É como se o país tivesse se habituado com a posição de fornecedor de commodities e renunciado a qualquer ambição de ter alguma importância na fronteira global da inovação.

Esta renúncia se traduz na tolerância com o status quo de ilegalidade que impera na região. Além da criminalidade, a ilegalidade se difunde de forma pervasiva por todo o tecido econômico da Amazônia e se ergue como obstáculo a iniciativas sustentáveis envolvendo atores diversificados. E a própria concepção predominante de infraestrutura na Amazônia hoje reflete a ambição míope de fortalecer as cadeias de valor menos promissoras da região e que, além de não gerar retorno expressivo aos que nela habitam, acabam sendo vetores de desmatamento.

Mais que meios de transportes de grãos e carnes, a Amazônia precisa de conexão de alta velocidade, de soluções sustentáveis para seus problemas de acesso a saneamento básico e incentivos a tecnologias modernas e descentralizadas para a geração de energia.

O Brasil democrático quer a Amazônia em pé. Os povos da floresta, os empresários responsáveis, os investidores com visão de futuro, as organizações ativistas e a cooperação internacional são os principais componentes de uma rede que só vai conseguir fazer jus ao que a Amazônia representa para o Brasil quando houver governantes que assumam a liderança de uma estratégia para que sejamos protagonistas da bioeconomia global.


*Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor de Amazônia. Por uma economia do conhecimento da natureza (Ed. Elefante/Outras Palavras)

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