segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Bruno Carazza* - Sobre homens e bichos

- Valor Econômico

O simbolismo do valor do dinheiro nas cédulas e na música brasileira

“A renda da tua saia vale cinco mil réis”, dizia o primeiro verso musical gravado no Brasil. Composto por Xisto Bahia e cantado por Manuel Pedro dos Santos (Bahiano), o lundu “Isto é Bom” foi lançado pela Casa Edison em 1902. A presença de uma referência monetária no registro fonográfico mais antigo do país seria o prenúncio de uma longa e conflituosa relação do brasileiro com a inflação, cantada em verso e prosa na MPB.

Se na virada dos 1800 para os 1900 cinco mil réis compravam o tecido para uma saia, quase 40 anos depois um vestido custava vinte vezes mais, conforme reclamam Noel Rosa e Vadico num samba de 1934: “Você me pediu cem mil réis / pra comprar um soirée”. Nascida no ano seguinte, uma canção de Candeia dá a exata medida da desvalorização da moeda brasileira naquelas primeiras décadas do século XX ao utilizá-la como referência de seu desprezo pela amada que o traiu: “Não vales mil réis”.

Tanto foi assim que Getúlio Vargas, em 1942, sepultou o padrão monetário que o Brasil herdou de Portugal e instituiu o cruzeiro. Numa época em que ainda não vigia o princípio da impessoalidade, Getúlio colocou o seu próprio retrato na nota de dez (!). Foi em vão. O desenvolvimentismo a qualquer custo, levado às últimas consequências com a Brasília de JK, aliado à insegurança institucional do período, corroeram o valor da moeda. Já no governo Castelo Branco, um ingresso para um brinquedo num parque de diversões custava centenas, como nos contam os mutantes Rita Lee e Arnaldo Baptista: “400 cruzeiros / velhos compram com medo / das mãos do bilheteiro / as entradas do trem fantasma”.

Para colocar ordem na economia, Roberto Campos e Octávio Bulhões levaram a cabo a mais completa reforma econômica já implementada no Brasil. Criaram o Banco Central, reformularam o sistema financeiro e instituíram uma revolucionária reforma tributária (com IVA e tudo há mais de 50 anos). Entre inúmeros outros avanços eles ainda cortaram três zeros do cruzeiro e lançaram o “cruzeiro novo” em 1967 - que, por determinação do novo ditador de plantão, Médici, voltou a se chamar só “cruzeiro” em 1970.

Uma nova família de cédulas foi lançada em 1972, e já na ressaca do “milagre brasileiro” e com nossa economia totalmente arruinada após os choques do petróleo, no final de 1978 saiu uma nota que até hoje ainda é referência no linguajar popular. Trazendo novamente o retrato de José Maria da Silva Paranhos, o barão do Rio Branco, a cédula de Cr$ 1.000 marcou época e foi motivo de uma engraçadíssima canção lançada por Nelson Gonçalves em 1982: “O Barão”.

Composta pelo veterano sambista Klecius Caldas e seu filho Fernando Pennafort, a música fazia troça de figuras que estamparam nosso papel-moeda nos tempos de Vargas (“Seu Cabral, Tiradentes, Santos Dumont / Já valeram dinheiro no tempo bom”) e, com a economia do período militar já fazendo água, caçoava: “Seu barão, o que que há com o senhor, que era o tal nos tempos do imperador? / A carestia tão cruel liquidou o seu papel / Alta do dólar, alta da libra / Vai o cruzeiro pro beleléu”.

Veio a redemocratização, e as expectativas de que o “dragão da inflação” seria domado logo se evaporaram em meio a uma montanha-russa de planos econômicos heterodoxos e trocas de moedas.

“Perplexo” é como o brasileiro se sentia naquela época, conforme cantaram em 1989 os Paralamas do Sucesso: “Mandaram avisar / agora tudo mudou / eu quis acreditar / outra mudança chegou”.

“Fim da censura, do dinheiro, muda nome, corta zero / Entra na fila de outra fila pra pagar”. Entre 1985 e 1994 nós convivemos com cinco moedas (cruzeiro, cruzado, cruzado novo, cruzeiro novamente e ainda o cruzeiro real) e até chegarmos finalmente ao real os valores do dinheiro brasileiro foram divididos por 2,75 trilhões para facilitar as contas em meio à espiral inflacionária.

De Sarney a Itamar, dezenas de personagens valorosos de nossa história se sucediam em cédulas que logo não tinham mais valor algum. Pela ordem foram JK, Rui Barbosa, Oswaldo Cruz, Villa-Lobos, Machado de Assis, Portinari, Carlos Chagas, Drummond, Cecília Meireles, Augusto Ruschi, Rondon, Carlos Gomes, Vital Brazil, Câmara Cascudo e Anísio Teixeira. Ao final já faltavam personalidades, e teve que se recorrer à efígie da República e a tipos populares como o gaúcho e a baiana.

Em 1993, no auge do descontrole inflacionário, ministros da Fazenda não chegavam a durar um mês no cargo, e é desse período a cédula de maior valor nominal da história brasileira: Cr$ 500.000 (meio milhão!). Trazendo na face o escritor Mário de Andrade, nada traduz melhor como foi o processo hiperinflacionário brasileiro: o verso “e então minha alma servirá de abrigo”, impresso logo acima do valor de 500 mil, foi extraído do mesmo poema que começa com “eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”. Mais Macunaíma, impossível!

O filósofo Renato Janine Ribeiro, que já ocupou este espaço, certa vez escreveu sobre o simbolismo da escolha do nome e das estampas da nova moeda. O “real” seria uma promessa e uma profissão de fé de que daquela vez o controle da inflação seria para valer, enquanto os animais da nossa fauna representavam um dos poucos ativos dos quais os brasileiros tinham orgulho e que ainda possuía valor no exterior: a natureza.

Quem esteve nos bastidores da criação do real dá uma explicação menos poética para a escolha: não havia tempo para se imprimir uma família inteira de novas notas em tão pouco tempo, e os técnicos da Casa da Moeda propuseram utilizar desenhos para os quais já havia modelos para serem utilizados. Faz sentido: o beija-flor da nota de um real era quase igual a outro que já havia aparecido no anteverso dos 500 cruzados novos com o naturalista Augusto Ruschi.

De uma forma ou de outra, lá se vão 26 anos em que a bicharada ocupa nossas carteiras, uma grande conquista para uma história monetária tão turbulenta. Mas a inflação de 423,9% desde janeiro de 1995 já levou à extinção do beija-flor e agora faz surgir, na nota de R$ 200, o lobo-guará - que sirva de alerta para os incertos tempos pós-pandêmicos que nos aguardam.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”

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