- Folha de S. Paulo
Durante a pandemia, presidente tentou autogolpe e aparelhar a Polícia Federal
A edição da revista piauí deste
mês traz uma matéria, assinada por Monica Gugliano, com o título “Vou Intervir!”. Ela conta a
história de uma reunião de 22 de maio, no Palácio do Planalto, em que Bolsonaro
teria decidido mandar tropas para fechar o STF.
O plano seria substituir os 11
ministros por 11 puxa-sacos de Bolsonaro, por tempo indeterminado. Uma
quartelada vagabunda raiz, nada dessas sutilezas de lenta corrosão democrática
“Steven Levitsky” de que eu vivo falando aqui. O presidente teria
sido dissuadido pelo general Heleno, que, para apaziguá-lo, soltou uma nota
ameaçando o STF.
A princípio, o governo poderia
ter desmentido a matéria, que é baseada em depoimentos concedidos off the
record. Nessa situação, cabe ao leitor decidir se confia na reputação da
revista —que, no caso da piauí, é impecável.
Entretanto, entre os
bolsonaristas a desconfiança com relação à imprensa é generalizada. Se o governo
quisesse desmentir a matéria, poderia tê-lo feito e considerado o assunto
encerrado dentro da bolha que o elegeu.
Não desmentiu.
Houve quem interpretasse que o
conteúdo da reunião vazou por interesse do governo, para avisar que o golpismo
ainda está vivo. Se for, foi desnecessário: era só mandar o pessoal ler minha
coluna, sempre digo isso.
Houve quem suspeitasse que o general Heleno vazou para
parecer moderado. Houve ainda uma suspeita de que o governo teria vazado o
conteúdo da reunião de propósito, para depois desmoralizar a imprensa com um
desmentido (uma gravação, por exemplo). É triste viver em um país em que essa
suspeita não é absurda.
De qualquer forma, a revelação
da piauí não teve repercussão política nenhuma. E a explicação é simples: em
geral, só se admite em voz alta aquilo de cujas consequências práticas se está
disposto a arcar.
Muito antes da matéria da
piauí, todo mundo já tinha visto Bolsonaro tentar o autogolpe em 2020. Mas, se
você disser em voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe, a solução é impeachment e cadeia. Se você
não puder e/ou não quiser fazer impeachment e cadeia, é mais fácil não dizer em
voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe.
Ainda não parece haver
correlação de forças para impeachment e cadeia: o centrão está no bolso do
governo, o auxílio emergencial ainda deve durar alguns meses. Enquanto for
assim, a turma vai fingir que não viu o golpe, os 100 mil mortos, o aparelhamento na Polícia
Federal.
Talvez essa correlação de
forças não mude nunca. Nesse caso, a fraqueza natural humana fará com que muita
gente racionalize que não foi tão ruim assim, “olha só como ele era democrata,
até comprou o Roberto Jefferson, todos nós aqui sempre
dissemos que isso era a marca do democrata, ninguém aqui nunca reclamou de quem
comprava o Roberto Jefferson”.
Eu, aqui, não vou racionalizar
isso, não.
O dia de trabalho de Bolsonaro
durante a pandemia de 2020 se dividiu entre organizar um golpe de manhã,
aparelhar a Polícia Federal de tarde e demitir o ministro da Saúde no
telejornal da noite.
Se esses crimes ficarem
impunes, prefiro viver com o incômodo dessa injustiça e esperar a maré virar.
Se não virar, levo o incômodo comigo até o fim. Não tenho como fazer acontecer,
mas deixo registrado para os leitores do futuro: em 2020, nós sabíamos que
Bolsonaro merecia ser preso. Todos nós sabíamos.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)
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