- Folha de S. Paulo
Quem chama silêncio de moderação reinventa significado de moderação na política
Quando um jornal se compromete a estar "a serviço da democracia" e promove a campanha #UseAmarelo pela Democracia, ele nos convida a lê-lo a partir do mais alto padrão de excelência jornalística. O sarrafo democrático é alto.
Quando título de editorial —"Jair Rousseff"— aglutina os nomes de mulher torturada e de apologista da tortura para comparar suas políticas fiscais, não comete simples falha retórica por trás de provocação marota. Opções retóricas não são moralmente neutras. Um jornal que rechaça o autoritarismo não as subestima nem confunde retórica com perfumaria.
Se palavras às vezes carregam violência, podem também trazer indolência descritiva. Recente surto de miopia tem suavizado Bolsonaro e contaminado atores da política institucional. Dias atrás o presidente traiu seus parceiros ao ameaçar "encher de porrada" a boca de um jornalista que perguntava sobre o intercurso financeiro de Queiroz e Michelle.
Chocado com o destempero, João Doria concluiu que "Bolsonaro voltou a ser Bolsonaro". Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ponderou que o presidente "vinha muito bem" e lamentou "volta do perfil autoritário". O PSDB de Mário Covas e Franco Montoro e a OAB de Raymundo Faoro e Thomaz Bastos ficaram num passado remoto. Sobrou a caricatura.
Pela contagem da jornalista Malu Gaspar, o Brasil passou 66 dias sem escatologia verbal presidencial. Da prisão de Queiroz se fez o silêncio, coincidência do destino. Do ponto de vista político, foi só isso mesmo: 66 dias sem escatologia verbal. Alguns fantasiaram que o presidente imergiu em processo de autoconhecimento e se enterneceu.
Na prática, essa ternura se expressou em veto a serviços essenciais de saúde a populações indígenas e em política de saúde com ministro interino que se recusa a gastar seu orçamento. Quando gasta, faz superestoque de cloroquina e ignora insumos básicos de UTI. "Vamos chegar a 100 mil mortos, mas vamos tocar a vida." Sobre a menina estuprada não disse uma palavra, nem sobre seus apoiadores que acossaram a família.
Essa aura de civilidade também se traduziu em performances públicas de saudação à cloroquina, de desprezo a cuidados sanitários, de responsabilização dos outros pelas mortes, de pressão pela volta sem critério da atividade econômica e do convite a cidadãos para "enfrentarem o vírus". No campo da inação ambiental, recorde de desmatamento, carona aérea a garimpeiros ilegais e negligência diante do incêndio que queimou 10% do Pantanal.
No "morde e assopra" de Bolsonaro, o "assopra" ficou por nossa conta. No Jair "paz e amor", paz e amor ficaram por nossa conta. Quem chama silêncio de moderação reinventou o significado de moderação na política. Moderação ou extremismo designam o conteúdo de atos públicos. Moralidade e legalidade são parâmetros para classificar atos dentro desse contínuo. Maleabilidade para acomodar interesses republicanos ou corruptos, e disposição para manipular a verdade e boicotar a transparência, também.
Silêncio ou ruído qualificam a forma desses atos. Níveis de agressividade, estratégias para insuflar antagonismo e atiçar emoções primárias, como ódio e medo, e os meios de manifestação (por palavra escrita ou oral, em ambiente solene ou informal) são parâmetros para classificar a forma.
Pode haver extremismo silencioso e moderação ruidosa. Ainda que forma e conteúdo caminhem juntos, misturar as duas coisas é pecado analítico grosseiro.
Nos atos e fatos do governo Bolsonaro não há paz nem moderação. Olhe o que importa e escolha a palavra que bem descreve. A preguiça linguística embutida no senso comum e no jargão jornalístico ou acadêmico definha a esfera pública. Erra na descrição e na crítica.
Bolsonaro aprendeu a barbarizar calado. Em jornalistas, porém, ainda está disposto a cuspir o vírus. Vamos chamar isso de quê? De sujeito briguento, polêmico, de maus modos à mesa? Ou de presidente que comete crimes comuns e de responsabilidade?
*Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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