sábado, 8 de agosto de 2020

Demétrio Magnoli* - O vírus governa o Brasil

- Folha de S. Paulo

Negacionismo impediu a coordenação das iniciativas de controle da pandemia

Há consenso, fora malucos incorrigíveis, de que o Brasil fracassou diante do desafio da Covid-19. Mas deve-se qualificar o fracasso: a régua para medi-lo não é o número de óbitos.

A taxa de óbitos no país (48 por 100 mil) é, no momento, menor que as registradas na Bélgica (86), Reino Unido (70), Peru (64), Espanha (61), Itália (58) ou Suécia (57). Na faixa brasileira estão o Chile (53), os EUA (49) e o México (40). Na Europa, teme-se uma retomada de contágios no outono e inverno. Não há prova de que ficaremos fora da curva das nações mais atingidas.

Fracasso de todas elas? Difícil afirmar, pois são fortes os indícios de que o resultado, em óbitos, é largamente determinado pelo ponto de partida.

Hoje sabemos que o vírus espalhou-se, silenciosamente, nos primeiros dois meses do ano. Por razões aleatórias, algumas áreas de elevada urbanização, na Espanha, na Itália, na França, na Bélgica, na Suécia e nos EUA, sofreram extensivos contágios na etapa oculta da pandemia. No Brasil, isso parece ter ocorrido com São Paulo, Rio, Fortaleza, Recife e Manaus. Depois desse impacto, com lockdown (Itália, Espanha, França) ou sem ele (Suécia), o gráfico de óbitos já estava traçado, ao menos em linhas gerais.

O Brasil, ao contrário da Itália ou do Equador, não fracassou no atendimento aos doentes. À exceção de alguns lugares (Manaus, por exemplo), os hospitais regulares e os de campanha deram conta da pressão. O SUS, com todas as suas conhecidas carências, salvou-nos da tragédia de contar mortes evitáveis. É uma lição prática sobre saúde pública que não temos o direito de esquecer.

Fracassamos por não fazer um lockdown geral? O diagnóstico, tão comum entre acadêmicos e na esquerda, ignora os limites impostos pela falta de um mínimo consenso político nacional e pelas profundas desigualdades sociais do país.

O Brasil elegeu um presidente negacionista —e isso tem consequências. Um lockdown no estilo italiano exigiria a ocupação das periferias e favelas por forças policiais sem compromissos com direitos (e vidas) dos cidadãos. O acadêmico que clama pelo lockdown evidencia desconhecer o país. O líder político de esquerda que faz o mesmo está investindo no impossível para colher o possível, na forma de votos.

O fracasso deve ser creditado, quase exclusivamente, ao governo federal. O negacionismo persistente, inabalável, impediu a coordenação das iniciativas de controle. A Constituição define a saúde como competência conjunta da União, dos estados e municípios.

Diante da criminosa negligência de Bolsonaro, o STF produziu interpretação criativa do texto constitucional, vetando a interferência federal nas decisões sanitárias estaduais. Daí, decorreram os planos incongruentes das quarentenas e flexibilizações em curso.

Os EUA de Trump, outro negacionista, vivem cenário similar. Contudo, a culpa não é do sistema federativo. Na Alemanha federal, um consenso político propiciou a cooperação entre o governo central e os estados que, mesmo pontilhada por atritos, conduziu a um planejamento eficaz. Pagamos o preço de uma opção eleitoral, com juros e multa.

No pacote do fracasso está o atraso na testagem em massa. Bombardeado pelas falanges bolsonaristas, o Ministério da Saúde ficou acéfalo no auge da crise, com a demissão de Mandetta, e converteu-se em acampamento de militares que, de costas para a epidemiologia, batem continência a um presidente inepto, irresponsável e amoral. Cinco meses depois do início das quarentenas, não temos um mapa dos caminhos de contágio. O governo federal escolheu, tacitamente, dirigir a nação para a longa tempestade da imunidade coletiva forçada.

Quando desceremos a curva? A resposta não depende de nós, mas dos anticorpos e células T. O vírus governa o Brasil.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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