domingo, 23 de agosto de 2020

Edgar Morin, entre a razão, a paixão e o mistério

Aos 99 anos, autor lança 'Conhecimento, Ignorância, Mistério', em que defende a necessidade da contradição para se alcançar o conhecimento complexo

Paulo Nogueira | O Estado de S.Paulo / Aliás

E que tal um livrinho de 109 páginas, escrito por um cara de quase 100 anos, que é uma espécie de teoria de tudo, incluindo a última palavra na ciência e nas humanidades, e até na ignorância e no incognoscível? Pois Conhecimento, Ignorância, Mistério entrega tudo isso, e é uma suma do pensamento de Edgar Nahoum, aliás Edgar Morin (o codinome dele na Resistência contra os nazistas, que nunca mais abandonou).

É uma obra por vezes um tiquinho críptica. Primeiro porque os temas são complexos, e segundo porque o autor é francês. Salvo honrosas exceções (Montaigne, por exemplo), intelectual francês prefere complicar a simplificar. Aqui, só o prólogo tem dez (10!) epígrafes. Há passagens involuntariamente burlescas: “Em outras palavras, tudo que elucida se torna obscuro sem deixar de elucidar.” Ou: ”Assim, a noção de emergência fornece um esclarecimento decisivo, embora ela seja inexplicável.” Lembra aquela piada em que mostraram a um cientista francês uma máquina construída segundo suas diretrizes, e ele resmungou: “OK, funciona na prática – mas funcionará na teoria?”

Não choremos de barriga cheia: é um livrinho apaixonante. Como quase toda obra deste autor de 99 anos (que acabou um novo título, sobre a pandemia). Morin pintou e bordou sobre política (Política e Civilização), ecologia (Terra Pátria e Uma Era Ecológica), educação (Os Sete Saberes e Uma Cabeça Bem Feita), poética e afetividade (O Homem e a Morte e Amor, Poesia e Sabedoria), epistemologia (O Método) e dilemas globais (Para Sair do Século 20 e Diante do Abismo).

Sem falar em duas obras clássicas na bibliografia da sétima arte: As Estrelas e O Cinema e o Homem Imaginário. Ainda por cima, Morin tem um xodó pelo Brasil (sim, tem gosto para tudo), que considera sua segunda pátria e já visitou várias vezes – além de ter escrito um livro a quatro mãos com o líder indígena Marcos Terena.

Quase centenário, Morin adora fuçar novas fronteiras. Como a noética, que estuda os fenômenos subjetivos da mente, sob uma perspectiva científica. Daí o intrigante conceito de “qualia”, celebrizado pelo filósofo australiano David Chalmers. Ou a amortalidade, uma longevidade cada vez maior, porém sem a decrepitude da velhice, e que adia indefinidamente (mas não infinitamente) a morte. Ou seja: Matusaléns com corpichos de Peter Pans.

Na presente obra, começa-se por reconhecer a precariedade do “cognoscível”: a realidade, essa impostora. Aliás, não é de hoje: para os “Vedas”, ela não passava de “maya” (ilusão); o budismo fala em “samsara” (aparências) e Platão em “sombras”. Já a contemporaneidade chuta de vez o balde com a relatividade e a incerteza quântica. Tá puxado. Na vida cotidiana, vamos empurrando com a barriga e os absolutos newtonianos, que conferem um pouco de ordem à casa.

Morin, compatriota dos “philosophes” iluministas e ex-comunista (foi expulso do PC francês por seu anti-stalinismo), questiona tanto o fetiche da razão quanto o determinismo materialista. Um dos fundadores do Centro de Estudos Transdiciplinares de Paris (junto com o grande Stephane Lupasco), é um dos poucos intelectuais franceses transdisciplinares (a par de Michel Serres) que não é nem um cientista nem um filósofo da ciência.

Como ele diz: “Os que projetam sua razão no universo tendem a considerar a irracionalidade uma ilusão dos ignorantes e, assim, se tornando eles próprios irracionais na ilusão racionalista, tendem a ficar cegos à irracionalidade do mundo. Quanto mais vemos o que existe de racional, mais é necessário ver também o que escapa à razão. A dificuldade está em dialetizar constantemente razão e paixão para evitar os dois delírios, o da razão congelada e o da loucura, não se deixar controlar pela técnica, mas controlá-la, ligar o eu a um nós.” Sorte dos chineses, que tem uma mesma palavra – hsin – para significar paixão e razão.

O teor do conhecimento é umas das esfinges de Morin. Por um lado, a informação proliferou – já não é mais possível um sabichão renascentista como Pico della Mirandola, um especialista em tudo. Por outro, uma das obsessões de Morin é a conexão da pedagogia, evitando o compartimentalizado e o disperso.

Se Eco grunhiu que as redes sociais multiplicaram os imbecis, Morin realça o paradoxo: “A nova ignorância é diferente da antiga, que vem da falta de conhecimento. A nova surge do pseudo-conhecimento” – como a pós-verdade, as fake news e o impressionismo autoritário. Como quando um Ministro da Saúde, em plena pandemia, não entende bulhufas de hospitais nem de doenças, mas de quarteis e munições. Ou quando um milico que malemá consegue articular um raciocínio lógico contesta médicos e cientistas, impingindo ao povo panaceias picaretas.

Não confundamos ignorância com mistério, que Morin louva. “Só podemos apreender o real por meio das representações e interpretações. A realidade do mundo exterior é uma realidade humanizada: não a conhecemos diretamente, mas por meio do nosso espírito humano, traduzida não só pelas nossas percepções, como também pela nossa linguagem, nossas teorias, nossas culturas e sociedades. Nessa ótica, nossos sentimentos vividos, subjetivos, nos parecem mais reais que tudo. Para nós, humanos, a afetividade, que é a própria subjetividade, é o núcleo duro da nossa realidade.”

Ou seja; tudo pelo que vivemos pode não passar de miragem – incluindo o tempo e o espaço, um dois-em-um caleidoscópico criado pelo Big Bang. Como destaca o Tao: “O sem-nome está na origem do céu e da terra”.

Por essas e outras, Edgar Morin é transdisciplinar. Não só conectando áreas do conhecimento, mas admitindo a proeminência epistemológica dos paradoxos. “A vida é polimórfica, pois as sociedades, as línguas, as culturas, as ideias, os deuses são entidades vivas. A vida é cacofonia e sinfonia. A vida é inteligente, sensível, criadora. A vida é cruel. A vida é admirável. A vida é louca.” Por isso, o “homo sapiens” não basta. É preciso acrescentar o “homo demens” – passional.

O mistério é equacionado, mas não pasteurizado, pela transdisciplinaridade: “A contradição a que chega todo conhecimento aprofundado não é erro, mas última verdade concebível. Podemos normalizar, racionalizar e assim eliminar o desconhecido e o incognoscível. Eles vão reaparecer a cada avanço do conhecimento. O conhecimento complexo é o caminho necessário para chegar ao incognoscível. Caso contrário, continuamos ignorantes da nossa ignorância. O mistério em nada desvaloriza o conhecimento que a ele conduz.”

Impossível não associar isto à atual “cultura do cancelamento”, uma meia-sola mais rancorosa nas velhas patrulhas ideológicas. Que lembra quando as crianças tapam os ouvidos e emitem gritos guturais para não ouvir interlocutores que as contradizem (se você nunca fica sabendo que pode estar errado, estará certo para sempre). De fato, cancelar é uma espécie de “ficar de mal” pseudo-adulto. 

Como Morin demonstra exaustivamente – mas não cansativamente -, não é só a democracia nem a biosfera que dependem da biodiversidade. O conhecimento também.

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