quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Paulo Fábio Dantas Neto* - A mão invisível do caos

O que é politicamente substantivo na negociação em curso entre Jair Bolsonaro e Paulo Guedes? É parceria (ainda que conflitiva) ou é conflito (ainda que entre parceiros)?

Esse parece ser aspecto ao mesmo tempo incerto e crucial para compreendermos melhor como (e se) os dois estão discutindo sua relação. Por enquanto quem não tem acesso íntimo ao suposto diálogo pode apenas especular, a partir das pistas de noticiário, de condutas antecedentes dos jogadores e de uma visão nublada do tabuleiro em que jogam. Especulo, portanto, devidamente advertido pelo pensamento de Wanderley Guilherme dos Santos, autor da expressão que empresta título a esse texto especulativo.

Vejo a relação em causa como conflito de interesses entre dois parceiros de uma parceria que está quase na hora de acabar. Um sinal de desfecho talvez haja quando eles não tiverem nem mais vontade de brigar, ao menos em público. Chegada a hora, aquele que possui mais recursos políticos e também a superioridade hierárquica sacará primeiro e resolverá a seu favor o conflito de interesses. Mas que conflito é esse, afinal? Para tentar responder, prossigo na especulação: Guedes quer entregar resultados ao mercado econômico-financeiro e Bolsonaro quer ofertar mercadorias no mercado político-eleitoral.

Desde que a dupla Lula-Palocci se desfez, a conciliação desses dois interesses não está disponível em qualquer dos dois mercados. A crise de 2008 instalou, em ambos, um "Nós X eles " que só não se tornou visível já na eleição de 2010, pela força política que então possuía o "venha a nós". Mas o "lá eles" já se entrincheirava e se armava, no mercado econômico.

O contexto crítico não é propício à renascença de uma ambiguidade benigna que concilie a lógica dos dois mercados. Há quatro anos, entre duas eleições, o ex-presidente Temer tentou, mas seu paz e amor não deu certo. Más línguas dizem que não deu porque, como protagonista, ele estava mais para vampiro e, ao agradar à plateia do mercado econômico, assustou a do mercado político. Penso mais que não deu porque, às vésperas de 2018, os elencos de ambos os mercados com os quais Temer contracenava levaram suas respectivas plateias a pedirem um bis de 2014. Assim, deixaram o protagonista e seu partido pendurados no pincel. E ficou inviável uma alternativa democrática ao conflito bipolar.

Como pensar que, já a meio caminho entre 2018 e 2022 - e em contexto de pandemia, o novo elenco eleito não vai produzir, perante as mesmas plateias, um quarto ato da mesma peça? Se agora o protagonista é um extremista, contar com bonança é, no mínimo, imprudência. Se se deseja esse avanço será preciso apelar à inteligência artificial da política. Isso vale também para o governismo, onde essa inteligência artificial não costuma prevalecer. Se o processo correr solto, deixado aos apetites naturais, bolsonarismo político e liberalismo econômico precisarão se separar para viverem suas vidas em liberdade. Cada qual buscando novo par no repertório já testado no campo que lhe é mais estranho. Assim, o bolsonarismo retirará sua poesia econômica da memória dos anos iniciais de Dilma Rousseff e o liberalismo econômico buscará sua poesia política no voluntarismo do governo Collor.

Trata-se de má notícia para quem, no governo e em certa esquerda que pretende ser seu oposto simétrico, crê e aposta na sustentabilidade da atual aliança governista. Além de não ter fé ideológica na indissolubilidade desse matrimônio, penso que é de interesse público a sua dissolução. Embora não justifique predição eleitoral, não deixará de ser uma brecha na fina camada de cimento que agrega o pacote econômico-social cujo anúncio foi adiado. Para contrapor, à química destrutiva dos infernos, de malvadeza e sedução, uma política social progressista e progressiva, que preserve e alargue o atual patamar de direitos sociais, será preciso que a inteligência artificial da política respeite a mão invisível do caos. Em tempo de penumbra, o futuro a ela pertence e temos acesso a ele só como arma retórica.

A fritura de Guedes ainda não é explícita talvez porque não seja fácil achar um economista sério que abrace a economia eleitoral de Bolsonaro. Mas não é sensato apostar fichas na paciência política do presidente. O mercado condiciona, mas não decide a ponto de obrigar Bolsonaro a aguardar o máximo consenso possível. Ele sabe que o caminho até 2022, que é seu norte, passa, já em 2020, pelos nordestes de todas as regiões do Brasil, onde o voluntarismo liberal de Guedes é moeda eleitoralmente podre. Então é intuitivo que o divórcio venha, por litígio ou capitulação. E sem longo prazo, porque o prazo está dado, na economia, por emergências da crise e, na política, pela antecipada campanha da reeleição.

O monopólio da iniciativa pragmática está, no momento, em mãos de um agregado que podemos chamar, grosso modo, de direita voluntarista e dogmática: extrema em política e ultra em economia. Condição que esse agregado ostenta por prerrogativa institucional e por uma momentânea aprovação auferida em pesquisas. O que fazer é a pergunta que ronda todas as outras famílias, da esquerda, do centro e também da centro-direita que reúne democratas conservadores e liberais. Um léxico antibolsonarista, do ponto de vista político, e não liberal, do ponto de vista econômico, está sendo ensaiado pela corrente hegemônica do PT, saltando por cima da "briga de branco" palaciana. Por outro lado, reunir projetos políticos presentes nas oposições não petistas ao dos liberais perdedores da briga palaciana de agora, parece ser a via na qual Rodrigo Maia já opera, em sintonia com a direção do DEM. São dois eixos principais de articulações paralelas de possíveis candidaturas presidenciais relevantes, antigovernistas e também comprometidas com o sistema político democrático. Próximos a cada um desses eixos, ou entre eles, há outros partidos e nomes com potencial agregador. Suas potências precisam ser consideradas a sério. Ao mesmo tempo precisarão considerar que se chegarem a 2022 como projetos partidariamente delimitados, sacramentarão uma diáspora democrática, como em 2018.

Fora desse quadro referenciado no sistema político, há um lugar distinto para o nome de Sergio Moro. Sem vocação unitária, nem delimitação partidária, aparece como outsider cujas chances são diretamente ligadas ao fracasso de tudo o mais. O ótimo seria o refluxo da bolha maniqueísta que essa cogitação de candidatura introduz no ambiente político. Um sub ótimo talvez seja sua digestão (mais complexa que a do próprio Guedes) no abraço aglutinador de dissidentes da aventura bolsonarista, que as articulações prudenciais de Maia podem oferecer. Isso pode ocorrer ao menos no primeiro turno, mesmo que não se conecte a uma grande política que se costure no segundo e até retorne ao ninho de onde acaba de sair.

DEM e PT podem delimitar (não centralizar) um campo democrático de grande política. Precisam entender-se sem demora e de modo objetivo, na direção de adubar terreno para futura aliança no segundo turno (pensá-la como possível no primeiro seria excessivo, talvez impróprio bem-querer) de um 2022 que há um mês parecia longínquo e hoje já se impõe às agendas dos atores. Esse entendimento entre pontas pode envolver pactos de não agressão e mesmo de cooperação, sem a obsessão paralisante da frente única a qualquer preço. Mesmo que em cada um dos dois eixos o processo se afunile para uma unidade do respectivo campo – e mesmo que esse afunilamento transborde, como é desejável, para abarcar atores outsiders positivos e se conectar a uma nova sociedade civil - sem um realismo programático orientado a uma grande política ainda mais aberta, o horizonte de eventuais candidaturas relevantes tende a ser a disputa para chegar ao segundo turno e ter a primazia de perder por último.

Nesse sentido, entrevista recente do governador da Bahia a O Globo é sinalização estimulante, desde que não seja só uma voz dissonante e o PT acabe adotando uma política positiva, como até aqui tem sido a do DEM. Os mais céticos talvez possam suspender provisoriamente seus juízos e dar o benefício da dúvida a um realismo moderado, amparado no respeito devido pela política à mão invisível do caos.

*Cientista político e professor da UFBa.

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