quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Poesia | João Cabral de Melo Neto - O cão sem plumas

A cidade é passada pelo rio 
como uma rua 
é passada por um cachorro; 
uma fruta 
por uma espada. 

 O rio ora lembrava 
a língua mansa de um cão 
ora o ventre triste de um cão, 
ora o outro rio 
de aquoso pano sujo 
dos olhos de um cão. 

 Aquele rio 
era como um cão sem plumas. 
Nada sabia da chuva azul, 
da fonte cor-de-rosa, 
da água do copo de água, 
da água de cântaro, 
dos peixes de água, 
da brisa na água. 

 Sabia dos caranguejos 
de lodo e ferrugem. 

 Sabia da lama 
como de uma mucosa. 
Devia saber dos povos. 
Sabia seguramente 
da mulher febril que habita as ostras. 

 Aquele rio 
jamais se abre aos peixes, 
ao brilho, 
à inquietação de faca 
que há nos peixes. 
Jamais se abre em peixes.

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