terça-feira, 1 de setembro de 2020

A situação dramática das finanças estaduais – Editorial | O Globo

Socorro ao Rio é imperativo na emergência, mas não dá mais para conviver com indulgência e improviso

Está no topo da agenda do governador interino Cláudio Castro a renovação do Regime de Recuperação Fiscal (RRF) para o Estado do Rio, cujo prazo expira no próximo sábado. Na emergência da pandemia, não há saída senão a renovação. Mas o problema não terá solução sem que o Brasil todo — inclusive o Rio — encare com a devida atenção a situação dramática das contas de estados e municípios.

O auxílio a governos estaduais deveria ser exceção. Mas a permissividade virou regra a partir de 2014, com mudanças sucessivas na legislação fiscal. Mesmo antes, entre 2008 e 2014, foram aprovados R$ 180 bilhões em novas dívidas estaduais, 50% de aumento. Tanto o Congresso quanto o Supremo têm adotado posturas lenientes em relação às finanças federativas.

Não é exagero dizer que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) vem sendo desmontada aos poucos, com o reiterado socorro financeiro da União aos estados. Em contrapartida, apesar dos repetidos empréstimos extraordinários, nenhuma das 27 unidades socorridas no último quinquênio alcançou equilíbrio de caixa. Dezessete encerraram o primeiro semestre em situação de progressiva asfixia financeira, segundo o último boletim do Tesouro.

É verdade que houve melhora nos últimos dois anos. Em 2019, as necessidades estaduais foram 71% menores que no ano anterior. Mas o problema central permanece: os fluxos de receitas e despesas são incompatíveis com o equilíbrio das contas públicas. A instabilidade financeira se tornou crônica. Rio, Rio Grande do Sul e Minas Gerais são casos mais graves, porque padecem tanto de dívida alta como de uma liquidez precária. No Rio, a receita fica em geral um terço abaixo do total de despesas. Em 2021, tudo indica que o governo estadual disporá de apenas um real em caixa para cada três reais a pagar.

A falta de dinheiro tem consequências trágicas. Antes de aderir ao RRF, em setembro de 2017, a insolvência afetava de forma severa a administração fluminense. Atrasos nos salários levavam servidores às filas para receber cestas básicas em mutirões de solidariedade. Praticamente todas as obras pararam. Universidades interromperam atividades.

Nos hospitais, cirurgias foram canceladas. Prontos-socorros fecharam as portas. Sem receber, empresas de limpeza abandonaram as unidades de saúde, e garis da Comlurb precisaram assumir o serviço. Em plena pandemia, tais efeitos seriam ainda mais catastróficos. O impacto na segurança também foi brutal. Milhares de policiais foram retirados das ruas, porque não havia mais como pagar horas extras. Sem manutenção, havia mais viaturas paradas do que rodando. Faltava dinheiro para combustível — e os indicadores de violência explodiram.

O Rio não soube, porém, aproveitar os três anos de fôlego no pagamento das dívidas para recobrar a saúde financeira. Não antecipou concessões de gás nem licitações de ônibus. Só agora marcou a privatização da Cedae, entregue à União como garantia de empréstimos. A reforma na Previdência estadual, mesmo aprovada, não entrou em vigor. De acordo com o Tesouro, ficaram abaixo da meta a revisão de incentivos fiscais, a modernização da Fazenda e a reestruturação administrativa.

O descompasso entre necessidade e realidade não é privilégio do Rio. Em quase todos os estados, as despesas avançam em velocidade bem superior às receitas. Entre 2004 e 2018, os gastos dos estados cresceram 13% acima do Produto Interno Bruto, enquanto as receitas subiram apenas 5%, revela estudo recente do economista Marcos Mendes, do Insper. Apenas Espírito Santo e Rondônia receberam nota máxima na última avaliação do Tesouro sobre capacidade de pagamento.

Para 20 estados, a folha de pessoal é o fator preponderante no aumento de gastos. Em uma década, saltou de 50% para 63% da receita. Entre 2011 e 2019, a média de crescimento das despesas com pessoal nos estados foi 11% superior à inflação. O recorde cabe ao Rio: mais de 70%. O Rio também foi, em 2019, o estado com maior relação entre dívida e receita: 286% (13% acima de 2018). Com 65% do que arrecada consumidos pelo funcionalismo, é um dos nove estados que rompem o limite de 60% estipulado na LRF.

Em mais da metade das unidades federativas, cada brasileiro gasta mais de R$ 2.456 ao ano com o funcionalismo local (no Rio, são quase R$ 2.700). O motor do crescimento é a folha de inativos. Em 2016, o custo previdenciário representava 14% das receitas estaduais. Chegou a 16% em 2019 (35% para o Rio). O problema tende a se agravar pela fragilidade das regras previdenciárias. “Se os problemas estruturais que originam o desequilíbrio entre receitas e despesas não forem resolvidos, crises fiscais serão recorrentes”, diz Mendes.

Reduzidos há tempos ao papel de gerentes de déficits, governantes estaduais passaram a recorrer a sucessivas renegociações de dívidas com a União. Obtêm apoio no Congresso, cujos integrantes dependem dos votos regionais, e respaldo do Judiciário, que decide a favor dos estados em nove de cada dez processos. Com a indulgência das regras complementares à LRF introduzidas a partir de 2014, voltou-se ao antigo vício: o governador empurra o custo da expansão dos gastos ao sucessor.

Prevalece o improviso sobre soluções estruturais, que cabem ao Congresso. Entre elas, a desvinculação de receitas para dar mais autonomia aos gestores locais, a reforma tributária para acabar com a guerra fiscal, a possibilidade de reduzir a folha do funcionalismo e as reformas previdenciárias. Mendes sugere ainda, para emergências, a criação de um fundo de socorro, turbinado com receitas do petróleo. O próprio RRF precisa ser aperfeiçoado para distribuir entre os credores o ônus do ajuste, hoje concentrado na União.

É imperativo renovar o RRF para o Rio durante a emergência, mas é preciso ter clareza sobre os riscos no horizonte. O descontrole das finanças estaduais ameaça o equilíbrio fiscal e todo o esforço em décadas de luta contra a inflação. O Brasil chegou ao limite com a sequência de socorros financeiros bilionários na última década. Os três poderes precisam encarar a questão com seriedade para evitar as eternas soluções na base do improviso.

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