quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Carlos Melo* - País que se atrela a outro na ONU vira garoto de recados

- O Estado de S. Paulo (23/9/2020)

 Na inconstância e no arrebatamento de seu líder, o governo Bolsonaro é previsível e banal. Foge ao modelo de instituições eficientes, capazes de garantir segurança e perspectivas de longo prazo a cidadãos e negócios; não coordena, não conduz, não se antecipa a problemas que, antes, ele os cria.

O esdrúxulo e o voluntarismo são regras consolidadas nas quais pode-se apostar, sem risco. Foi o que se viu no discurso brasileiro na ONU. Novamente, o presidente foi previsível: lavou as mãos em relação à pandemia, vangloriou-se daquilo que não fez, desprezou a ciência. Na questão ambiental, vitimizou-se; grande injustiçado mundial.

Sua “política de tolerância zero ao crime ambiental” foi o ponto mais criativo (e irônico) do discurso.

Voltou a acusar a Venezuela, alvo preferencial de “inimigo externo” – todo regime autoritário precisa de um. Em sua cruzada medieval, denunciou suposta “cristofobia”. Adulou Donald Trump, sapateando sobre as brasas do multilateralismo. Trump exerce enorme fascínio sobre o brasileiro, que o ama e o saúda em continência, com gestos e opiniões clonadas.

Bolsonaro sabe que se Trump for derrotado em novembro, seu governo estará isolado. Por isso, incrementa doses de maior submissão. A troco do quê?

Possivelmente, nem Bolsonaro nem seu chanceler saibam ao certo, pois a reciprocidade de Trump tem sido humilhante para o Brasil. As “bases” aprovam. Mas, agarrar-se a Trump não é solução, mesmo em caso de vitória. No Concerto das Nações, o atrelamento de um país a outro o transforma num garoto de recados, sem importância. Mesmo assim, nada disso é estranho: no caleidoscópio sem lógica do universo bolsonariano, vertigem dá prazer.

  Cientista político. Professor do INSPER

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