sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Fernando Abrucio* - Qual Estado emerge da reforma? (1)

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Há um clamor na sociedade brasileira por maior equidade e a proposta de reforma administrativa do governo passa bem longe disso, protegendo a vanguarda do atraso

O governo Bolsonaro mandou ao Congresso sua proposta de reforma administrativa, deixando uma pergunta no ar: que tipo de Estado está sendo proposto? No projeto do Executivo há de tudo: medidas corretas (1), incongruências entre as ideias sugeridas e a prática do bolsonarismo (2), lacunas no diagnóstico (3), uma visão de futuro parcial sobre os desafios do serviço público (4) e um modelo político-institucional ambíguo em relação à democracia (5). O debate social e parlamentar tem de enfrentar cada um desses cinco aspectos e evitar que se produza um Frankenstein, que pode ter até coisas boas (e tem), mas cujo resultado agregado pode ser negativo para a cidadania.

O presente artigo é o primeiro de dois que tratarão desse complexo e estratégico tema para o aperfeiçoamento do Estado brasileiro, com grande impacto nas próximas décadas. Há um esgarçamento fiscal do país, muitas aposentadorias ocorrerão nos três entes federativos nos próximos anos, ao mesmo tempo em que é preciso melhorar o serviço público prestado à população mais carente, e é necessário enterrar o patrimonialismo e autoritarismo que estão no DNA de nossa formação.

O passo inicial do debate deve ser a definição de um modelo ideal de administração pública, a partir da combinação de dois critérios: uma visão normativa, baseada em grande medida na reflexão sobre a experiência internacional, e o diagnóstico do caso brasileiro. Neste último ponto, a questão central é olhar o “conjunto da floresta” do serviço público, e não apenas algumas de suas “árvores”.

Do ponto de vista dos valores, a experiência internacional realça três qualificações: o Estado precisa ser republicano -- com critérios claros de transparência e respeito à coisa pública -, democrático, com medidas claras de responsabilização dos governantes, além de formas de diálogo e participação social, e, como aspecto central, ter um serviço público com desempenho satisfatório para lidar com os principais desafios coletivos da nação. No caso brasileiro, por exemplo, só haverá uma gestão pública bem-sucedida se enfrentar o seu grande problema, que é a desigualdade.

É necessário também reforçar o fato de que o bom desempenho da gestão pública envolve múltiplos desafios. A pesquisa acadêmica chama esse fenômeno de os “Es” da administração pública. Desse modo, é preciso, em primeiro lugar, buscar maior economia (evitar gastos excessivos) e eficiência (fazer mais com menos) do Estado.

Além disso, as políticas públicas têm de ser eficazes e efetivas, alcançando os resultados planejados e tendo impactos positivos sobre os problemas sociais. As ações governamentais precisam ser, ademais, éticas em termos de respeito às regras legais, bem como capazes de empoderar a sociedade como agente que participa e controla decisões estatais.

Os governos contemporâneos buscam, ainda, tornar-se mais empreendedores, conceito que significa aqui inovação e liderança em grandes questões coletivas. Por fim, não é possível falar em bom desempenho da gestão pública sem pensar na equidade, seja na composição do serviço público, seja nos resultados de seus programas. Cada um desses objetivos é importante em si, mas a principal qualidade de administrações públicas bem-sucedidas está na capacidade de articular esses “Es”. Eis uma lição que a reforma administrativa brasileira tem de incorporar.

A reflexão normativa deve ser acoplada ao diagnóstico do caso brasileiro. Sem dúvida alguma há muitos problemas na administração pública, mas, como base inicial, é preciso realçar os avanços desde 1988, passando por inovações em muitas políticas públicas em vários governos - não só no plano federal, mas no subnacional - e, principalmente, pelo debate gerado pela reforma Bresser. São muitos os pontos positivos, principalmente se comparamos o momento atual com a longa trajetória do modelo patrimonial brasileiro. Porém, por questões de espaço, só destacarei três aspectos.

Primeiro, a redução enorme do arbítrio e falta de controle público que havia em termos de contratação de pessoal e criação de estruturas governamentais. Era muito comum a demissão em massa de servidores na área social e, como outro lado da moeda, a contratação de milhares de apaniguados para as mais diversas funções públicas. Deve se ressaltar que o Brasil só conseguiu universalizar o atendimento do ensino fundamental e da atenção básica à saúde porque foram contratados profissionais com uma qualificação básica para essas funções.

O Estado brasileiro também se tornou muito mais transparente e democrático, com a ampliação das informações públicas, das formas de controle social e institucional. E como último avanço que quero destacar aqui cito a preocupação do outro grande momento reformista da administração pública nos últimos 30 anos, a Reforma Bresser, de fazer uma discussão das mudanças legais e organizacionais juntamente com a definição de um modelo de gestão pública que não descolava o tema do desempenho das questões vinculadas à republicanização e democratização da governança pública. Da experiência recente esta seria a maior lição que os propositores da reforma e, sobretudo, os congressistas deveriam guardar como linha mestra de qualquer aperfeiçoamento do Estado brasileiro.

Uma síntese dos problemas da administração pública brasileira poderia concentrar seu foco em quatro grandes questões. A primeira é o excesso de corporativismo que se instalou ao longo dos anos na administração pública brasileira, cujas bases já estavam em parte do texto constitucional e com maior ênfase na legislação que regulamentou o Regime Jurídico Único. Esse fenômeno gerou penduricalhos remuneratórios absurdos, isonomias entre funções completamente diferentes e empecilhos a qualquer tipo de avaliação séria e profissional do desempenho do funcionalismo público. O corolário desse modelo corporativista era uma previdência pública insustentável em termos atuariais, fortemente desigual em relação ao restante da população e mesmo entre carreiras e Poderes, estabelecendo uma casta no país.

A administração pública brasileira, em segundo lugar, tornou-se muito engessada, com estruturas rígidas de funcionamento, contratação e controle. Para lidar com as especificidades dos problemas, no mundo há hoje formas plurais de gestão de pessoal e de gerenciamento dos órgãos públicos. O Brasil optou pelo formato único, o que gerou mais um espaço para o famoso jeitinho brasileiro: contratação de temporários eternos, terceirizações (ou quarteirizações) que camuflam os gastos com pessoal, além de outras formas de administração paralela que burlam a estrutura, feita para não funcionar. Somou-se a isso um modelo de controle que muitas vezes reduz demasiadamente a autonomia dos gestores públicos e não é capaz de evitar, logo de cara, a ação dos grandes corruptos.

A seleção dos principais cargos de dirigentes públicos constitui-se num terceiro elemento mal resolvido na gestão pública brasileira. O projeto enviado pelo Executivo federal cita de maneira tímida o tema, pois é preciso definir mecanismos mais claros de seleção pública, competitiva, transparente e profissional de vários postos de alto escalão do Estado brasileiro. Não é possível saber se a omissão se deu porque Bolsonaro encheu a máquina pública de bolsonaristas ideológicos, geralmente incompetentes e sem a expertise necessária para os cargos públicos, ou porque agora é preciso distribuir o poder pelo Centrão.

Em quarto lugar, há um enorme descompasso de condições de trabalho entre carreiras, Poderes e entes federativos. A ideia de que há um serviço público homogêneo no Brasil não se sustenta em nenhum dado oficial ou pesquisa acadêmica séria, mas tal opinião é hegemônica na opinião pública. Há privilégios claramente situados em grupos e estruturas institucionais e sem cuidar isso fica muito difícil modernizar a gestão pública brasileira. Afinal, como colocar no mesmo barco professores da educação básica que ganham, em média, um pouco mais de dois mil reais, trabalhando 40 horas semanais e enfrentando todo tipo de privação e violência, com profissionais que ganham mais de 20 mil de início de carreira em Brasília, e ao longo da profissão acumulam benefícios mil para ficar bem longe da sociedade brasileira? Há um clamor por maior justiça no país e a proposta governamental passou bem longe disso, protegendo a vanguarda do atraso. Os parlamentares terão de explicar essa proposta ao povo - que não se esqueçam disso.

Dados os pressupostos normativos e o diagnóstico geral da administração pública brasileira, é preciso entender melhor a especificidade da proposta bolsonarista. Ela contém aspectos positivos, mas também visões equivocadas de reformismo e um projeto de poder que tem limites quanto ao republicanismo, à democracia e ao combate à desigualdade. Na próxima coluna, destacarei mais claramente esses pontos no projeto. De todo modo, fica aqui uma primeira conclusão: o Congresso Nacional deve discutir profundamente essa PEC e chamar urgentemente a sociedade para este processo, pois os erros que forem cometidos agora custarão anos de patrimonialismo, ineficiência e fracasso do poder público no atendimento aos cidadãos socialmente mais vulneráveis.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas,

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