sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Flávia Oliveira - A política social no centro

- O Globo

O governo Bolsonaro carece, desde a origem, de intimidade com a agenda de bem-estar

Uma política social que alcança quatro em dez lares durante a mais grave crise sanitária em cem anos, da qual 4,4 milhões de famílias dependem para comer, que sozinha gerou efeito positivo de 2,5% na atividade produtiva. Sob qualquer ponto de vista — político, social, econômico, ético —, o auxílio emergencial tinha de ser estendido. Ao governo, só caberia encontrar recursos, missão que não chegou ao fim.

O governo Jair Bolsonaro carece, desde a origem, de intimidade com a agenda de bem-estar social. A narrativa sempre foi de retrocesso em direitos, perseguição a adversários, desidratação do Estado, fetiche por armas, desprezo pela ciência, desapreço pelo meio ambiente, liberalismo econômico. A despeito do aumento da pobreza e da precarização galopante do mercado de trabalho, até a pandemia, emagreciam tanto a quantidade de lares beneficiados pelo Bolsa Família quanto a rede de proteção social. No fim do ano passado, três milhões de pessoas esperavam aposentadoria, seguro-desemprego e outros benefícios.

O cenário mudou quando ficaram evidentes os efeitos danosos da Covid-19 na saúde, nas condições de vida e na economia. Foi a sociedade civil que deu o alerta sobre a criação urgente de um programa amplo de transferência de renda para proteger quem já estava na miséria e acolher os que dela se aproximavam. A ideia alcançou o Congresso Nacional e, depois, a equipe econômica, que inicialmente propôs um voucher de R$ 200, lembra Tatiana Roque, vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica: “Foi um processo novo e bem-vindo de formação de consenso político. Sugerimos R$ 300, parlamentares elevaram para R$ 500, e o governo fechou em R$ 600 por três meses”.

Desde o início, quem entende de política social sabia que um trimestre não daria conta da crise. Só mais tarde, o governo se convenceu. Primeiro, estendeu os R$ 600 por dois meses; agora, R$ 300 até o fim do ano. O Brasil tem tradição em políticas sociais de transferência de renda centrada na família e com condicionalidades, sublinha Wanda Engel, ex-ministra da Assistência Social e idealizadora do Cadastro Único. O auxílio emergencial é individual e incondicional. Num programa, o valor do benefício varia de acordo com o tamanho da família; no outro, uma mãe sem cônjuge com um filho ganha o mesmo que um casal com três ou quatro crianças. A habilitação por smartphone ou computador, sem o sistema de assistência social, foi a brecha para o R$ 1 bilhão em benefícios pagos irregularmente a servidores e militares.

Ainda assim, o auxílio emergencial foi a chave para minimizar a crise decorrente da pandemia — de quebra, rendeu popularidade ao presidente. O IBGE apurou que, em 44,1% dos domicílios brasileiros, pelo menos uma pessoa recebeu o benefício em julho; em estados do Norte e Nordeste, a proporção alcançou dois terços dos lares. O Ipea identificou 4,4 milhões de famílias que sobreviveram somente com o repasse oficial. A Universidade Federal de Pernambuco estimou que os cinco primeiros meses do programa adicionaram 2,5% ao Produto Interno Bruto. Ainda assim, a atividade econômica desabou 9,7% no segundo trimestre, ponto crítico da pandemia.

O governo, agora, terá de aprender sobre política social para formatar o modelo equilibrado, justo e eficiente que pretende chamar de Renda Brasil. Recém-formada, a Frente Parlamentar da Renda Básica já se dedica ao tema. Ganha corpo um benefício universal que repasse a famílias um valor por criança de até 6 anos, diz Tatiana. Wanda Engel defende uma rede de proteção que assegure, de um lado, a superação da pobreza estrutural, via exigência de escolarização de crianças, jovens e adultos; de outro, aporte emergencial para famílias à beira da vulnerabilidade por fatores externos, como desastres naturais, crises econômica ou sanitária. Uma coisa é certa. A política social está no centro. Não tem volta.

APARELHAMENTO E PERSEGUIÇÃO
À primeira vista, a proposta da reforma administrativa apresentada ao Congresso Nacional aumenta o risco de aparelhamento político e perseguição a servidores. No país de rachadinhas, guardiões e saque ao Erário via organizações sociais, é perigoso o passe livre para União, estados e municípios contratarem, sem concurso, funcionários por prazo determinado e para postos de assessoria e liderança.

O governo deixou para os parlamentares a tarefa de estabelecer quais serão os cargos com estabilidade assegurada. Faltou transparência e coragem. Sem métricas objetivas, imparcialidade e governança, a possibilidade de demissão de servidores estáveis por desempenho insuficiente abre espaço para perseguição político-ideológica, uma assinatura do atual governo. Da mesma forma, é convite ao autoritarismo o sinal verde para o presidente da República, por decreto, reorganizar autarquias e fundações, extinguir órgãos e cargos públicos.

O redesenho do Estado é necessário, a eliminação de privilégios, fundamental. Mas isso não se fará com uma reforma que alcança a base e preserva o topo. De novo, militares, parlamentares e o topo do Judiciário foram poupados. O caráter impositivo a estados e municípios pode desaparecer no Legislativo. Corporações mais organizadas conseguem brecar mudanças; pagam a conta os mais fracos. Já vimos esse filme.

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