quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Gabriela Prioli - Discurso aos iludidos

- Folha de S. Paulo

 A mentira como instrumento do abandono

Às vezes, o presidente Bolsonaro surpreende a todos. Outras não surpreende ninguém.

Em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, na terça, Bolsonaro foi exatamente o que esperávamos: colocou a culpa nos outros, espalhou teorias da conspiração e propagou inverdades já contraditas. Nada de novo sob o sol: as queimadas na Amazônia são culpa dos índios, a crise atual no Brasil é culpa da mídia e inação do seu governo frente à pandemia é culpa do Judiciário.

O Brasil é tradicionalmente o país que abre o evento máximo da ONU desde 1955, exatamente por ter se consolidado como um interlocutor respeitado por todas as partes. No passado. Atualmente, são 20 minutos de vergonha nacional, que teremos que aguentar, aparentemente, por mais dois anos.

O Brasil foi um dos fundadores da organização, em 1945, e ator crucial na escrita da Carta de São Francisco, momento em que a humanidade atingiu o seu ápice na cooperação. Nossa representante na conferência, Bertha Lutz, é creditada com a inclusão da igualdade de gênero no documento. Coitada da Bertha Lutz e coitada da igualdade de gênero.

Por 74 anos, o Brasil contribuiu para um mundo que respondesse aos seus desafios comuns de maneira conjunta. Não mais.

Foi quando a organização chegou aos seus 75 anos que o Brasil decidiu abandonar o pragmatismo responsável, abandonar as mulheres, abandonar os índios e abandonar todos os seus princípios.

O "nacionalismo" é um dos esteios do governo Jair Bolsonaro. É um discurso fácil, que apela a uma comunidade imaginada para unir seus apoiadores como se eles estivessem ali cumprindo uma missão. Nada como dar objetivo aos iludidos. Mas é um nacionalismo barato, que não protege as nossas florestas, não protege os nossos cidadãos mais vulneráveis e não protege a nossa reputação no mundo. Mas fica bonito, para alguns, no discurso.

Brasil acima de tudo." Qual Brasil? Porque o nosso está queimando, com fome e morrendo de Covid-19.

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