terça-feira, 1 de setembro de 2020

Luiz Gonzaga Belluzzo* - A linguagem da finança e o teto de gastos

- Valor Econômico

O debate brasileiro sobre o teto de gastos é um exemplo da produção da “realidade” pela linguagem dos mercados

Em entrevista à “Folha de São Paulo” publicada na terça-feira, 18 de agosto um economista (do mercado) ouvido pela reportagem, disse que uma possível saída antecipada de Guedes e a derrogação do teto de gastos “podem levar os indicadores de mercado a um patamar destrutivo”.

O sistema financeiro é a instância dominante nas relações econômicas do capitalismo de todos os tempos e em todos os seus tempos. Um sábio atilado chamou o dinheiro e suas instituições capitalistas de “Comunidade”. Sim, Comunidade com C maiúsculo. Em 1933 John Maynard Keynes disparou petardos contra o bunker das finanças: “As regras autodestrutivas da finança são capazes de apagar o sol e as estrelas porque não pagam dividendos”.

As análises mais certeiras da assim chamada “financeirização” estão amparadas em visões do capitalismo que privilegiam as relações estruturais e suas leis de movimento, ou, sua dinâmica. Essa dinâmica reproduz em suas formas o propósito constitutivo desse sistema de relações: a acumulação de riqueza monetária.

A observação desse movimento sugere que o estoque de ativos financeiros - direitos sobre a riqueza e a renda - emerge dos fluxos de renda criados pelos gastos privados e públicos. Neles estão encarnadas as poupanças sacadas dos fluxos de renda pretéritos. A permanente geração desses ativos, a partir dos fluxos, vai abrigar as poupanças vindouras das famílias e das empresas.

As avaliações desse estoque de riqueza ganham autonomia e são efetuadas diariamente nos mercados ditos financeiros. Tais avaliações buscam desvendar o comportamento futuro dos preços do ativos e, portanto, de suas taxas de remuneração, afetando as decisões dos proprietários e gestores dessa riqueza. Estes senhores dilaceram-se entre partilhar o risco do investimento na produção socialmente útil e geradora de novos empregos ou resguardar a grana nos escaninhos da valorização “autorreferida”. Nos últimos 40 anos, esse jogo foi jogado nas regras do “nóis cum nóis”: fusões e aquisições, recompra de ações e pagamento de dividendos.

Apoiado no linguista John Austin, Christian Marazzi, em seu livro “Capital e Linguagem”, cuida das marchas e contramarchas da finança dos últimos 30 anos. Marazzi sublinha a natureza performativa da linguagem do dinheiro e dos mercados financeiros. Performativo quer dizer que a linguagem dos mercados financeiros contemporâneos não descreve, e muito menos “analisa” um determinado estado de coisas, mas produz imediatamente fatos reais.

O domínio da finança produziu o que Christian Marazzi chamou de “metamorfose antropológica do indivíduo pós-moderno”. Ele invoca o capítulo XII da Teoria Geral. Aí, Keynes se vale dos concursos de beleza promovidos pelos jornais para descrever a formação de convenções nos mercados de ativos. Os leitores são instados a escolher os seis rostos mais bonitos entre uma centena de fotografias. O prêmio será entregue àquela cuja escolha esteja mais próxima da média das opiniões. Não se trata, portanto, de apontar o rosto mais bonito na opinião de cada um dos participantes, mas, sim, de escolher o rosto que mais se aproxima da opinião média dos participantes do torneio.

Keynes introduz, assim, na teoria econômica as relações complexas entre Estrutura e Ação, entre papéis sociais e sua execução pelos indivíduos convencidos de sua autodeterminação, mas, de fato, enredados no movimento das estruturas. Na esteira de Freud, Keynes introduz as configurações subjetivas produzidas pelas interações dos indivíduos no ecúmeno social das “economias de mercado”.

Nesse percurso, o comportamento mimético dá origem, em suas conjecturas imitativas, a situações nas quais a busca coletiva da liquidez culmina na decepção de todos. A âncora que sustenta precariamente as ariscas subjetividades atormentadas pela incerteza da liquidez está lançada nas areias movediças da peculiar “sociabilidade” do capitalismo financeiro.

No livro “Capitalisme et Pulsion de Mort”, Gilles Dostaler e Bernard Maris afirmam que nem Freud nem Keynes acreditam na fábula da autonomia do indivíduo, tão cara aos economistas. “O indivíduo está imerso na multidão inquieta, frustrada, insaciável, sobre a qual pesa essa imensa pressão cultural, esse movimento ilimitado da acumulação...”

A metamorfose do indivíduo pós-moderno aludida por Marazzi é um “salto de qualidade” no comportamento mimético examinado por Keynes. Os “avanços” nas formas de comunicação promovidas pelo desenvolvimento da mídia de massas e o uso das tecnologias de informação tornaram mais rápida e eficaz a linguagem do dinheiro.

Na mídia impressa e na eletrônica, as matérias de negócios e economia disseminam os significantes dos mercados financeiros embuçados na linguagem do saber técnico. Os comunicadores “falam” a língua articulada conforme as regras gramaticais dos mercados.

Assim, o capitalismo investido em sua roupagem financeira cumpre a missão de “administrar” a constelação de significantes à procura de significados, submetendo os cidadãos-espectadores aos infortúnios da domesticação e da homogeneização decretados pelo “coletivismo de mercado”.

O afã dos “especialistas” em realizar sem perdas o valor dos ativos se esbate no fragor das insuspeitadas e caprichosas evoluções e involuções dos resultados que não correspondem às intenções. Diante das incertezas que os afligem diariamente, os especialistas buscam desesperadamente uma âncora psicológica para assentar suas angústias.

Os episódios de instabilidade quase sempre são deflagrados pelos resultados não-antecipados das decisões individuais dos gestores da riqueza monetária privada. Há pouco mais de dez anos, na crise de 2008, os governos gastadores e os bancos centrais generosos salvaram os especialistas e suas instituições da derrocada falimentar.

A busca desesperada por segurança e estabilidade encontra refrigério no equilíbrio dos orçamentos públicos. O debate brasileiro sobre o teto de gastos é um exemplo da produção da “realidade” pela linguagem dos mercados. É o truque formidável para garantir a estabilidade de um sistema econômico inerentemente instável.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

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