sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Míriam Leitão - Teoria e prática de uma reforma

- O Globo

A proposta de reforma administrativa dá ao presidente o poder de extinguir órgãos, reorganizar autarquias e fundações. Isso teoricamente parece razoável, porque daria ao gestor mais flexibilidade para uma administração mais eficiente. O problema são os atos do próprio governo Bolsonaro. Eles conspiram contra a ideia de concentrar tantos poderes no presidente da República. Bolsonaro quis entregar a demarcação de terras indígenas aos ruralistas, o cuidado com os índios a religiosos, esvaziar o Coaf, calar o Inpe, tirar autonomia da Polícia Federal e espionar as tendências políticas de servidores. Isso dá poder ao chefe do executivo sobre a administração direta ou indireta. As universidades são fundações.

O Brasil está numa situação estranha. É claro que é preciso limitar os altos salários, acabar com aumentos automáticos, dar mais flexibilidade ao gestor, reduzir o número de servidores com estabilidade, diminuir as disparidades de salários para as mesmas funções e reformar o Estado para que ele seja mais eficiente. Mas esta administração nos lembra quão corrosivo pode ser o poder de destruição de um governo ideológico se não houver limites para a sua atuação. Imagine o que Bolsonaro faria, se pudesse, com o Ibama, ICMBio, Funai. Pense no que ele já fez à Fundação Palmares.

O governo decidiu fatiar a reforma, por isso não se sabe exatamente que perfil da administração ele tem em mente. Ontem foi divulgada a PEC que acaba com o Regime Jurídico Único, cria as cinco formas de vínculo e apenas para os futuros servidores. Só depois virão os projetos de lei que entrarão nos detalhes. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) acha que essa estratégia foi inteligente.

— Eles acertaram. Não vai resolver o problema fiscal, mas pelo menos garante alguma coisa para o futuro. A decisão de ser apenas para os novos servidores diminuirá a resistência. Não haverá servidor na porta falando sobre o seu direito adquirido. Os princípios e a essência vão para a Constituição. Mas a regulamentação vem por PLs e Lei Complementar. Quanto à questão da extinção de órgãos, não acho que o Congresso vai abrir mão do poder de veto, seja em relação a esse governo ou qualquer um. Você vai dar essa autonomia para o presidente de plantão? Nosso poder é fiscalizar o executivo — diz a senadora.

Os secretários que apresentaram a reforma falaram em princípios de impessoalidade, transparência, meritocracia, proteção do servidor contra o governante e separação entre governo e Estado. Bom ouvir isso. O que destoa é a realidade. O secretário de desburocratização e gestão, Caio Paes de Andrade, abriu a entrevista negando na prática essa separação:

— Hoje estamos aqui para vencer o atraso. Esse é um momento histórico. O presidente Bolsonaro cumpre uma promessa de campanha. Hoje vocês vão conhecer mais uma mudança estrutural proposta pela dupla Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Para mim é uma honra servir ao presidente e ao ministro da Economia numa agenda reformista que coloca o Brasil no caminho da vitória contra o atraso. Eu pessoalmente odeio o atraso com todas as minhas forças —disse o secretário.

Pouco tempo antes, o presidente ao qual ele serve estava descendo com helicóptero da Força Aérea para se encontrar com um grande grupo de pessoas aglomeradas, muita gente sem máscara, inclusive ele, no meio da pandemia, num ato típico de campanha eleitoral.

A última reforma no serviço público foi feita pelo ministro Bresser Pereira no governo Fernando Henrique, em 1999. Ela aprovou na época o fim da licença-prêmio, dos anuênios. Criou o período probatório de três anos antes da estabilidade. A proposta agora é transformar esse prazo de experiência em um prolongamento do concurso. A demissão por insuficiência de desempenho foi criada na reforma de 99, mas nunca foi regulamentada. Até hoje existe progressão automática, que é uma ideia esquisita de avanço na carreira apenas porque o tempo passou.

Há muita coisa a aperfeiçoar na administração pública. Na Constituinte, celetistas foram transformados em estatutários. Isso foi um erro que custou caro aos cofres públicos. Mas antes de concentrar poderes no presidente, sob o argumento da agilidade e eficiência administrativa, é preciso que se saiba a resposta para a pergunta: como proteger o Estado do mau governo?

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