domingo, 27 de setembro de 2020

O que pensa a mídia – Opiniões / Editoriais

 

O código da fome – Opinião | Revista Istoé

Dá para imaginar o que é isso? Ficar dias e dias com o estômago a ronco, aquela dor aguda, lancinante, enganada às vezes a caldo de folha ou na maisena insossa de farinha com água e nada mais? Nem aroma para consolo? Sentado no declive do chão de pedra, proximidade do teto de palha, parede de barro e pau, que ameaça todo dia cair, no castigo do sol e da chuva, com o odor incessante de esgoto a céu aberto, em um ambiente onde a miséria espreita como sina, dividir a parca ração do dia é quase um privilégio de poucos ali — cenário mais extenso e predominante Brasil afora do que imaginam os benfejados pela sorte.

Quem não está lá nem desconfia da sinopse de angústias desses humildes desvalidos, o contingente populacional classificado por institutos oficiais na condição de carência alimentar extrema, consumidos pela privação, cujas vidas são uma experiência de risco em alta cadência, rotineiramente. As crianças desnutridas, que mais sofrem, com seus corpos miúdos, pernas mirradas, braços de tão magros estendidos como asas sem serventia, remela nos olhos entre insetos, reclamam no choro instintivo (manhã, tarde e noite) por um prato de alimento sólido. Uma refeição honesta, quem sabe! No amplo universo dos desesperados sociais brasileiros, viver com fome é realidade constante.

Ao menos 10,3 milhões deles estão no momento sem nada para comer, segundo a mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, divulgada semana passada. Uma barbaridade! Número que tende a piorar com a pandemia, depois de um incremento recente de mais de 3,1 milhões de necessitados na mesma condição, agravando um quadro que já é vergonhoso e inaceitável no País que se autoproclama “celeiro do mundo”, detentor do maior cinturão verde planetário, onde tudo que planta dá, com área cultivável de dimensões continentais.

A verdade do evento trágico é deveras pior. Atualmente, segundo o levantamento, 36,7% dos lares brasileiros — isso mesmo! — têm dificuldade para garantir qualidade e quantidade de alimentos a todos os integrantes da família. Atente para o drama: está se falando de mais de um terço, quase a metade das casas no País, onde falta comida suficiente para seus membros. É suportável aceitar tamanha indigência? Talvez até para não chocar em demasia uma sociedade acostumada ao descaso, os famintos são, eufemisticamente, enquadrados em três níveis de “insegurança alimentar” — todas elas abomináveis, mas que tendem a abrandar o choque de quem não compreende a dimensão do desastre social, de proporções épicas, agora em curso.

Na escala, existem as famílias que não podem comprar o suficiente para sustento e passam aperto. No pelotão intermediário é considerado restrição alimentar “moderada” o constrangedor estratagema de pular refeições. E no grau extremo, não há mesmo nada o que comer, muitas vezes por dias, e a mendicância, apelando nas ruas, segue como -ultimo subterfúgio. É desolador aceitar, mas a fome por aqui adquire rosto e move um Brasil mais comum do que muitos imaginam.

Por que falhamos em providências essenciais e prementes para boa parte da população? Como pudemos chegar a esse grau de desamparo? A face mais arrasadora e ultrajante da calamidade alimentar está no contraste da consciência de líderes, senhores do Estado, que negam o destino comum a tantos brasileiros. O mandatário Jair Bolsonaro, por exemplo, é o primeiro a desdenhar do infortúnio: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, disse recentemente, desconsiderando as evidências e até chacoteando dos desvalidos. “Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com físico esquelético”. Provavelmente, o parvo chefe da Nação não está frequentando as ruas que devia na condição que o cargo lhe exigiria.

Todos sabem, sanha corrente, Bolsonaro não desperdiça uma chance de errar, como confirmam as baboseiras lançadas em qualquer direção. Foi agraciado pelo Congresso com uma política de transferência de renda de R$ 600, que não era seu intento e acabou encampando como ideia sua para fins eleitoreiros, capaz de, na esteira do isolamento, conter em parte a extenuante procissão de miséria dos pés-descalços, descamisados, desabrigados indolentes da paisagem nacional.

Mas agora se depara na encruzilhada de como resolver um problema em crescente avanço. Após enterrar, espetaculosamente, o “Renda Brasil”, maquina alternativas, nem todas claras, que passam pelo resgate da famigerada CPMF para fazer brotar verba suficiente. É bom desconfiar da produção de gambiarras no Planalto Central.

Quando o capitão Bolsonaro tem uma ideia, convém trancá-lo no banheiro e esperar que passe. O vendaval de aflitos não pode esperar muito tempo, na crueza da escassez, para saciar suas necessidades.

Na calada da noite, nos barracos construídos ilegalmente ou na cobertura de papelão cercada por pneus velhos, debaixo do viaduto, em palafitas rudimentares, tentando sobreviver por meios insanos, são seres humanos, cidadãos, favelados ou não, invasores de terras e de imóveis abandonados, “pobres e paupérrimos” — na lembrança, essa sim providencial, do presidente — que acalentam e esperam diariamente resposta para a fome. João, Genésia, José, Francisca, são tantos os nomes e rostos dessa tragédia que machuca até encará-los. O pequeno Gerson, da comunidade paulista de Paraisópolis, deitado no chão, numa miserável confraternização com seu vira-lata, é todo dia engabelado pela mãe para sair às brincadeiras, tentando driblar a fome. É dor que não passa assistir à cena.

Qualquer um, no mínimo de discernimento humanitário, vergaria lágrimas. A miséria mostra seu código de necessidade mais evidente na fome. Ela atinge e faz vítimas em escala bíblica no Norte e no Nordeste, que abrigam a parcela prevalente dos domicílios com privação alimentar. As carências, no caso, são mais sentidas em áreas rurais, regiões ribeirinhas, lares chefiados por mulheres, por negros ou pessoas autodeclaradas pardas.

É a fome reforçando o preconceito. Perceba, também, o tamanho da frequência do drama enfrentado pelo rebento Gerson, acima citado: metade das crianças com menos de cinco anos (6,5 milhões ao todo no País) cresce em residências com algum grau de insegurança alimentar. O que tamanha chaga representa no desenvolvimento do País a maioria desconfia. A alimentação adequada é condição “sine qua non” para o aprendizado e desempenho escolar. Parte majoritária do público de pequeninos encontrava o que comer nas escolas e entidades de ensino.

Com o fechamento dos estabelecimentos, em meio à quarentena, nem isso. A merenda de crianças e adolescentes sumiu da rotina e a leitura lógica sinaliza que a pandemia intensificou a vulnerabilidade dos que não comem, numa escalada sensivelmente agravada pelo aumento conjuntural dos preços dos alimentos. Na pororoca de situações inesperadas, todas conspirando para o mal, o desperdício de bilhões de sacas de grãos, frutas e vegetais — que se deixam cair nos transportes de safra, nos equívocos de escoamento ou de armazenamento indevido — parece inconcebível e poderia reparar ao menos parte do drama.

Restam ainda a autoestima e esperança dos desvalidos e o caminho da solidariedade, capaz de fazer milagres. Há ainda um Brasil capaz de oferecer um prato a mais para uma boca a mais. Não apenas por meio das entidades filantrópicas e mutirões assistenciais. Cada um pode e deve fazer a sua parte, começando ontem, para legitimar a erradicação dessa doença da fome, que teimou em maltratar logo o povo habitante do celeiro do mundo.

 Brasil, a potência agrícola onde a fome aumenta – Opinião | O Globo

Em vez de encarar o problema real, governo cria norma que ignora o consenso científico sobre alimentos

Depois de mais de uma década em declínio, a fome voltou a crescer e já faz parte do cotidiano de 10,2 milhões de brasileiros, ou 5% da população, constatou o IBGE em pesquisa divulgada na semana passada. O aumento na insegurança alimentar das famílias mais pobres é uma das sequelas do longo ciclo recessivo na economia, iniciado em 2014, agravado na pandemia pela alta do desemprego e do trabalho informal.

Os dados coletados em 58 mil domicílios sugerem um enorme retrocesso nas condições mais básicas de vida na pobreza: o retorno ao quadro existente década e meia atrás. Reforçam, também, evidências da expansão das desigualdades. A escassez de alimentos para subsistência ocorre com maior frequência nas famílias chefiadas por negros. Crianças e adolescentes são afetados desproporcionalmente.

É situação gravíssima, absolutamente incompatível com a posição do Brasil como potência global na produção de alimentos. Merece ação governamental urgente, concentrada nos núcleos familiares mais fragilizados das regiões Norte (10,2% dos domicílios pesquisados), Nordeste (7,1%), Sudeste (2,9%) e Sul (2,2%).

O governo Jair Bolsonaro, como de costume, prefere a realidade paralela. Simplesmente abstraiu o aumento da insegurança alimentar e resolveu dar prioridade à discussão sobre as mudanças nas diretrizes do Ministério da Saúde para a indústria de alimentos.

Na semana passada, o Ministério da Agricultura sugeriu mudar normas para suprimir das embalagens uma sensata orientação de saúde pública: “Evite alimentos ultraprocessados”. Argumentou que tais alimentos “são feitos industrialmente de forma semelhante a preparações culinárias caseiras”.

Cientistas das universidades de São Paulo, Harvard, Johns Hopkins, Yale e Cambridge, entre outras, reagiram com ironia. Disseram não entender por que a Agricultura esquecera o impacto negativo comprovado na saúde pública de ultraprocessados como biscoitos, embutidos ou bebidas açucaradas. Diante da péssima repercussão, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, anunciou na sexta-feira uma mudança de posição, reconhecendo que nutrição é problema de saúde pública. Conveniente, mas perda de tempo.

É legítimo que o governo planeje aperfeiçoar o código alimentar. Mas precisa se submeter ao debate no fórum adequado, o Congresso, onde já existe uma dezena de projetos de lei em tramitação sobre o assunto.

Urgente e prioritária é a necessidade de mobilizar toda a estrutura do governo federal para, com estados e municípios, resgatar a população pobre atingida pela forma mais aguda de insegurança alimentar. É inconcebível que haja fome num país que acumula recordes mundiais sucessivos na produção e exportação de proteínas e de produtos agrícolas — e o governo perca tempo ressuscitando debates que a ciência já resolveu.

 Crise constitucional nos Estados Unidos deve preocupar o planeta – Opinião | O Globo

Nem os pais do federalismo, autores da Constituição mais longeva, poderiam prever Donald Trump

A Constituição americana, em vigor desde 1788, é um marco da política moderna. Foi a primeira a instaurar o cargo de presidente da República e a estabelecer um sistema de freios e contrapesos capaz de fazer funcionar o ideal dos três poderes independentes, sob vigilância mútua. A longevidade é prova de seu sucesso. Ela fez da democracia americana um exemplo para as demais, inclusive a brasileira. Mas não é perfeita. Volta e meia, surge alguma lacuna, objeto de emendas e interpretações nos tribunais. Nem os pais do federalismo foram capazes de prever tudo. Sobretudo, não teriam como prever Donald Trump.

Depois de passar semanas alimentando teorias da conspiração sobre o voto por correspondência e fraudes imaginárias nas eleições de novembro, Trump foi além. Deu a entender que não aceitará o resultado das urnas, por “não ter certeza” de que a eleição será honesta, e só respeitará uma decisão da Suprema Corte. Daí a pressa em preencher a vaga aberta no tribunal com a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg.

É altíssima, portanto, a probabilidade de que a disputa eleitoral termine nos tribunais, a exemplo do que aconteceu em 2000, quando George W. Bush derrotou Al Gore por um voto na Corte. Caso seja aprovada a indicação da juíza Amy Coney Barrett, ele consolidará a maioria conservadora no tribunal (de seis votos a três), que o favorece em caso de embate judicial.

Nos últimos meses, juristas e analistas têm especulado com apreensão sobre os cenários que podem lançar o país no abismo de uma crise constitucional sem precedentes. Envolvem a seleção dos delegados que votam no Colégio Eleitoral, a certificação de resultados distintos por Executivos e Legislativos estaduais, lacunas na lei eleitoral (falta um organismo central como o TSE brasileiro), um período de apuração mais extenso em virtude do voto postal e todas as dificuldades imagináveis numa transição tumultuada.

O certo é que dificilmente o vencedor será conhecido na noite de 3 de novembro. Diante da indefinição, duas datas se tornam também cruciais: 14 de dezembro, quando os delegados do Colégio Eleitoral votam nos 50 estados; e 6 de janeiro, quando o novo Congresso se reúne para contar os votos. Se perder para o democrata Joe Biden, Trump terá que entregar o poder ao meio-dia de 20 de janeiro.

Senadores republicanos se apressaram em reafirmar o compromisso com uma transição pacífica. Não se sabe o que faria o eleitorado fanático inflamado por Trump, nem os juízes diante das contestações, muito menos os militares que podem ser convocados em caso de conflito. É sombria a perspectiva de uma eleição indefinida ou crise constitucional na democracia mais longeva — e país mais poderoso — do planeta.

 

Preço da negligência – Opinião | Folha de S. Paulo

Indefinição na área econômica expõe falta de rumo do governo e alimenta desconfiança dos credores

No pouco tempo que resta para discutir algo no Congresso neste ano, o governo terá de lidar com a reforma tributária, a situação crítica do teto de gastos e seus planos ambiciosos para ampliar o Bolsa Família, que não sabe como financiar.

No entanto, perto de concluir o segundo dos quatro anos de seu mandato, Jair Bolsonaro não tem proposta organizada para os impostos e a sustentação do teto de gastos. Indefinições, incapacidade executiva e demagogia dificultam a tramitação dessas matérias.

A indecisão suscita a especulação de que o governo e seus novos aliados podem tomar decisões fiscais populistas. Tais suspeitas contribuem para a degradação das condições financeiras, visível na alta das taxas de juros de longo prazo.

Antes da pandemia, já estava claro que as despesas cresceriam até bater no teto de gastos, o que implicaria reduzir a zero investimentos e paralisar parte da máquina pública.

Emendas constitucionais que regulamentavam cortes emergenciais de despesas foram enviadas ao Congresso em fins de 2019, onde ficaram esquecidas. Com a crise sanitária, os problemas se agravaram.

A redução possível nas despesas de pessoal sustentaria o teto, mas não abriria espaço para investimentos, e menos ainda para o novo programa de benefícios sociais.

Ampliar o Bolsa Família dependeria de cortes severos em despesas sociais. Bolsonaro recusou tal alternativa e transferiu o problema para o Congresso, mas não se pode fazer malabarismo. Dada a intenção de substituir o auxílio emergencial pago na pandemia por um novo programa, ou se contêm algumas despesas, ou se altera o teto.

O financiamento de um Bolsa Família maior criará despesa obrigatória de tal monta que impedirá a recuperação do investimento público e limitará a prestação de serviços do governo, que se torna uma máquina que paga salários e não tem capacidade operacional.

Ainda que mantido o teto, o déficit federal previsto para 2021 será de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), excluídas despesas com juros. Em 2019, antes da pandemia, fora de 1,3%. A dívida pública manteria sua trajetória de crescimento.

Seria possível evitar o pior se os juros continuassem no chão e a atividade econômica recuperasse algum dinamismo, mas não há como conseguir isso sem um programa fiscal respeitável e reformas.

Falta um projeto crível para o Orçamento de 2021, e o governo semeia confusão no debate de projetos urgentes em tramitação no Congresso. A preocupação maior de Bolsonaro é se eximir de decisões difíceis, confiante na ideia de que a irresponsabilidade não tem custos. É um grave equívoco, e os credores do governo já começaram a cobrar o preço da negligência.

Palanque indevido – Opinião | Folha de S. Paulo

Defesa de chanceler para visita de secretário dos EUA oferece nova demonstração de subserviência

 A rápida passagem do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, pelo Brasil, ocorrida no último dia 18, continuou gerando constrangimento para o governo brasileiro na semana passada.

Acompanhado pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ele visitou um centro de acolhimento de refugiados venezuelanos em Boa Vista, capital de Roraima, e aproveitou a chance para atacar a ditadura de Nicolás Maduro.

O episódio foi definido como uma afronta à política externa brasileira pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Um grupo de ex-chanceleres, entre os quais o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, assinou nota de protesto classificando a visita como “utilização espúria do solo nacional”.

Convidado a se explicar em audiência no Senado na quinta (24), o ministro Araújo afirmou que o encontro com Pompeo tinha sido excelente e considerou sem sentido as críticas que lhe foram dirigidas.

O problema é que os Estados Unidos irão às urnas em novembro, e o presidente Donald Trump concorre à reeleição. A retórica hostil em relação à Venezuela pode conquistar pontos no eleitorado de origem hispânica, e a oportunidade em Roraima ajudou a reforçá-la.

Não há dúvida de que a situação é dramática na Venezuela, onde a população sofre com uma crise econômica prolongada e está submetida a um governo que persegue seus opositores e obstrui canais de participação democrática.

Cabe ao Brasil buscar diálogo e promover a defesa da democracia no país vizinho, mas espera-se que isso seja feito em fóruns adequados —e não criando palanque para autoridades americanas fazerem proselitismo em território brasileiro.

É preciso zelar pelos princípios constitucionais que prescrevem o compromisso do Brasil com a autodeterminação dos povos, a não intervenção e a busca por soluções pacíficas dos conflitos.

Como o presidente da Câmara dos Deputados lembrou ao criticar a visita de Pompeo, o Brasil tem uma longa tradição de convívio respeitoso com os vizinhos e interesse na estabilidade de suas fronteiras.

Esse legado não raro é ameaçado pelas excentricidades do presidente Jair Bolsonaro e de seu chanceler, que não perdem ocasião de bajular Trump e mostrar subserviência aos interesses americanos.

Menos mal que Araújo tenha sido chamado a prestar esclarecimentos ao Senado —ainda que tenham se revelado tão pouco convincentes.

 Elogio à irresponsabilidade – Opinião | O Estado de S. Paulo

Por enquanto, Bolsonaro se sustenta graças a uma combinação de populismo barato com capacidade de fingir que é presidente

O governo de Jair Bolsonaro atingiu o maior patamar de aprovação desde sua posse, mostra pesquisa do Ibope recentemente divulgada. No levantamento, 40% dos entrevistados disseram considerar o governo “ótimo” ou “bom”, 11 pontos porcentuais acima do verificado em dezembro do ano passado – antes, portanto, da pandemia de covid-19. A avaliação negativa caiu de 38% para 29% no mesmo período.

Bolsonaro obviamente não atingiu esse nível de aprovação em razão do modo destrambelhado como está lidando com a pandemia. Sua gestão da crise é um desastre em todos os aspectos – e os quase 140 mil mortos falam por si. O mais provável é que, ao contrário, o presidente, ao isentar-se sistematicamente de qualquer responsabilidade no que diz respeito à doença e a seus efeitos sociais e econômicos, terceirizou a impopularidade, sentida muito mais pelo Congresso e, principalmente, por governadores e prefeitos – obrigados, estes sim, a enfrentar o desafio da pandemia, contando com escassa ajuda federal e em muitos momentos sendo hostilizados pelo próprio presidente.

Pode-se especular que, para parte significativa dos entrevistados, a covid-19 não passava mesmo de uma “gripezinha”, como a ela jocosamente se referiu Bolsonaro, que a todo momento estimulou aglomerações e a “volta à normalidade”, como se isso fosse possível. As imagens de praias lotadas mesmo diante das evidências de que o pior ainda não passou são mais eloquentes do que qualquer pesquisa.

Assim, o crescimento da popularidade de Bolsonaro, a despeito de tudo, é uma espécie de elogio à irresponsabilidade, traduzida não somente em sua infame campanha a favor do uso da cloroquina, espécie de elixir bolsonarista, mas principalmente na conclusão do presidente segundo a qual quem ficou em isolamento na pandemia é “fraco” e se “acovardou”.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro segue colhendo os frutos eleitorais do auxílio emergencial para os mais necessitados. Entre os entrevistados com renda familiar de até um salário mínimo, a popularidade presidencial saltou de 19% para 35% desde dezembro. Entre os que estudaram até a 8.ª série, a aprovação de Bolsonaro passou de 25% para 44%. Nada semelhante a isso se verificou nas faixas socioeconômicas intermediárias e superiores da população.

O governo provavelmente vai explorar a pesquisa como prova de que o presidente sempre esteve certo e o resto do mundo, errado. É preciso deixar claro, contudo, que popularidade nem sempre é sinônimo de bom governo – que o diga Dilma Rousseff, que na metade de seu primeiro mandato tinha aprovação superior a 60% e que conseguiu se reeleger em 2014 a despeito de seu desempenho calamitoso na Presidência.

Como mostra o caso de Dilma Rousseff, a propósito, nenhum governo se sustenta somente com base na mistificação e na embromação. A popularidade da presidente petista, que era de 63% em março de 2013, caiu para 31% em julho daquele ano, em meio a grandes protestos, e estava em 10% um mês antes da admissão de seu processo de impeachment pela Câmara, em abril de 2016. 

Por enquanto, Bolsonaro se sustenta graças a uma combinação de populismo barato com uma assombrosa capacidade de fingir que é presidente sem exercer o cargo. Mais cedo ou mais tarde, contudo, a ausência de um plano claro de governo, fruto da patente inaptidão de Bolsonaro para desempenhar a função para a qual foi eleito, será percebida pela população.

Até lá, a única pesquisa de opinião que realmente importa, e que projeta um futuro nada glorioso, é a que se dá entre investidores, especialmente os estrangeiros. E a opinião destes parece clara: neste ano, até agosto, US$ 15,2 bilhões deixaram o País, o maior montante no período desde 1982, quando o Banco Central começou a fazer esse levantamento.

A irresponsabilidade de Bolsonaro pode até lhe render algum apoio entre os brasileiros incapazes, por diversas razões, de enxergar além de seus estreitos horizontes pessoais. Já para aqueles que dependem de confiança e racionalidade para investir, o presidente não engana mais ninguém.

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