quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Vinicius Torres Freire - O arroz com feijão e Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Dólar, exportação, auxílio emergencial e problemas em certos mercados explicam carestia

O dólar subiu, o Brasil está exportando muito grão, houve tropeços nos mercados de alguns produtos e, novidade da calamidade, pode ser que o povo miúdo esteja comendo mais com o dinheiro auxílio emergencial. Mas há ruídos de que talvez esteja acontecendo alguma coisa esquisita em alguns mercados, de soja, milho e arroz em particular.

Gente do agronegócio conta que há criadores e indústrias importando grão a preço mais alto do que o das exportações. Sim, podem ocorrer turbulências em alguns cantos do país. Mas, em tese e em geral, não faz sentido que se exporte a preço menor do que seria possível obter aqui dentro. No entanto, é gente do ramo que aponta o problema, reclamando da inexistência de um regulador eficaz de estoques.

Jair Bolsonaro, que é do ramo da demagogia, sentiu a panela esquentando e tenta tirar o corpo fora com uma mistura de ignorância com oportunismo. Pede “patriotismo” aos comerciantes (como pediu ao mercado financeiro) e que os supermercados vendam comida a preço de custo. Nada disso funciona no que interessa, mas a propaganda pode evitar algum desgaste político.

Inflação da comida rodando a mais de 9% ao ano costuma lascar um pouco da popularidade de governantes. A “inflação do tomate” (dos alimentos em geral, na verdade) em março de 2013 foi um dos motivos do mau humor que contribuiria para o clima ruim que explodiria enfim em junho de 2013.

Em abril do ano passado, um motivo da irritação com Bolsonaro pode ter sido a inflação de alimentos rodando também a 9%. No entanto, o preço da comida sobe a essa velocidade praticamente desde maio. O prestígio de Bolsonaro cresceu desde então.

Ainda não há dados suficientes para estimar a causa do aumento da comida, que se concentra em arroz, em alta recorde de 15 anos, feijão, leite, soja, aves e ovos, na farinha de trigo e, mais recentemente, na batata.

A alta do dólar deve ser um motivo forte –afeta qualquer produto “comercializável” no exterior. A inflação geral dos comercializáveis é quase o dobro da inflação geral. Em quarenta anos, a inflação no atacado e no varejo jamais foi tão díspar.

Há problemas em alguns mercados. A área plantada do arroz diminuiu, por causa de preços ruins no passado. Segundo análise do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Escola Superior de Agricultura da USP, a Esalq, os produtores de arroz ainda seguram estoques a fim de esperar preço ainda melhor, o que acontece também com o milho.

A demanda mundial está forte. A quantidade de soja exportada pelo Brasil neste ano até agosto foi quase 34% maior que a do ano passado; a de arroz, 163%.

No caso de laticínios, os produtores não fizeram estoques bastantes em abril, como é de costume, diz análise do Cepea. Dada a pandemia, a perspectiva era de consumo reduzido. Não foi o que aconteceu.

O faturamento nos supermercados era no início de setembro 16% maior que em fevereiro, imediatamente antes do choque do vírus, pelos dados das vendas com cartões, da Cielo. Parte disso foi substituição alimentos que deixaram de ser consumidos fora de casa. Parte pode ter sido aumento de consumo das pessoas que mal comiam ou comiam mal antes do auxílio de R$ 600.

Em suma, a carestia parece se dever à conjunção de mercado mundial quente, real desvalorizado, problemas técnicos em alguns mercados e aumento de consumo doméstico. É terrível e espantoso que o fato de o povo comer um pouco mais tenha efeito na inflação de alimentos.

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