quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Vinicius Torres Freire – O capital nos tempos de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Confiança e regras claras importam, mas não enchem barriga e não destravam investimentos

Em teoria, estão abertas as porteiras para que empresas privadas invistam em saneamento e gás; deve ser enfim destravado o investimento na tecnologia 5G e na expansão das telecomunicações em geral. Quando, quanto e se dinheiro vai aparecer em novos negócios é questão mais nebulosa.

É muito improvável que empreitadas nessas áreas tenham algum papel em uma possível retomada econômica, se é que se vai ver investimento notável antes de 2022. Mas, goste-se ou não do que se passa, de privatização em particular, houve mudança legal relevante nesses setores.

Desde outubro de 2019, o Congresso aprovou as novas leis de telecomunicações e de saneamento. Está para aprovar a nova lei do gás. Nesta semana, Jair Bolsonaro facilitou o caminho para a expansão do 5G e das teles, regulando a instalação de antenas e o uso de outras infraestruturas. O atrasado leilão das frequências de 5G deve acontecer em meados de 2021.

Falta um monte de regulamentações extras e outros acertos para definir com clareza as regras do jogo, da concorrência e dos preços no caso de saneamento e gás. Faltam agências reguladoras funcionais e comprometidas com o público. Até agora, mudou a base dos negócios: houve abertura do mercado e desregulamentação. Dinheiro firme é outra história. A cada vez que se trata da aprovação das leis gerais para cada setor, a gente ouve e lê que aparecerão dezenas de bilhões de investimentos. Não é assim.

No caso do saneamento, a lei facilita a persistência do antigo regime de predominância estatal. A depender dos arranjos locais, lugarejos pobres ainda podem ficar sem o serviço. Mas algum governante mais esperto pode desde já tentar atrair investimento privado, ainda mais para lugares em que o povo pode pagar a conta. É mais emprego, é progresso sanitário e não custa para o cofre do governo —ao contrário.

Ainda assim, gestores de dinheiro grosso e entendidos do setor dizem que a coisa vai começar devagar, tentativamente, e algum progresso começaria a ficar visível apenas em dois anos e olhe lá. Por falar em dois anos, é a estimativa mais otimista para que se perceba algum resultado na mudança no gás. Isto é, para que se note o começo de investimento relevante e algum efeito nos preços.

O caso aqui é ainda mais enrolado, pois são necessários acertos na distribuição estadual do gás, na prática sob controle do governo dos Estados, há risco de empresas privadas de transporte (por dutos) de gás atropelarem a concorrência e de outras mumunhas, como as que tentaram enfiar na lei.

No Brasil, a maior parte do consumo de gás é industrial —na química, nas fábricas de cloro, fertilizantes, alumínio, vidro, biocombustíveis ou cerâmica, por exemplo. O segundo maior destino do gás é a produção de eletricidade. Até o ano passado, a Petrobras era quase um monopólio de produção e distribuição (mas suas transportadoras estão sendo vendidas).

Em teoria, pode haver mais concorrência. Em tese, com mais competição haverá preços menores, o que pode beneficiar a indústria e permitir a abertura ou reabertura de empresas.

Além do investimento extra, o 5G também pode permitir a criação de novos negócios, sabe-se lá quais, a depender da imaginação de empreendedores e do custo de capital.

Uma dúvida grande é a demanda. Ao fim deste ano, o PIB per capita do Brasil deve ser ainda 13% menor do que em 2014. Confiança e regras claras importam, mas não enchem barriga, não destravam investimentos: falta uma perspectiva de crescimento.

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