quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Cristovam Buarque* - Depois da devastação

Não se pode menosprezar os efeitos do vírus que, em poucos meses, matou mais de um milhão de seres humanos, dos quais 153 mil brasileiros, desarticulou a economia e provocou atraso no progresso. Além da perda irreparável por morte, a maior devastação será na educação. Milhões de crianças ficarão com traumas psicológicos e mesmo neurológicos. Todos voltarão à escola com apagão cognitivo que muitos não superarão. Milhões não voltarão às escolas este ano, milhares abandonarão os estudos, outros as encontrarão fechadas ou sem professores. 

É equívoco responsabilizar a covid-19 pelo agravamento da desigualdade educacional, porque ela sempre foi tão grande, que é impossível ter piorado. É como dizer que a desigualdade aumentava entre a senzala e a casa grande, em momentos de epidemia. Os senhores tinham mais remédios, mais cuidados, menos promiscuidade sanitária, mas a desigualdade entre eles e os escravos era tão abismal que não piorava. A epidemia mostra a desigualdade, não piora.

Nossa desigualdade educacional não decorre do vírus, mas do descuido histórico com a educação dos pobres. Não é por causa da covid que 12 milhões de adultos não sabem ler “Ordem e Progresso” escrito na bandeira republicana; antes da epidemia eles já estavam abandonados, condenados à desigualdade em relação aos doutores. Também não foi o vírus que provocou 100 milhões de analfabetos funcionais, completamente desiguais em relação aos oito milhões de universitários.

Nem foi a covid que provocou a desigualdade em desempenho que há nas universidades, conforme a escola de base e a carga de leitura que o aluno recebeu em cursos anteriores ao ensino superior. A covid pode provocar desigualdade entre os que estão em algumas das raríssimas escolas que se adaptaram ao ensino remoto e aqueles que estudam em outras que não se adequaram ao ensino a distância, mas a grande desigualdade já existia, sobretudo entre os que estão dentro da escola e os que a abandonaram antes de concluir o ensino médio. 

Não foi a covid que montou o frágil sistema educacional em que 60% dos brasileiros ficam para trás, sem concluir o ensino médio, e no máximo a metade dos 40% terminam um curso secundário sem aprender o que é necessário para enfrentar o mundo atual: saber bem português, falar outros idiomas, conhecer matemática, história, geografia, artes, valores morais, habilidades para exercer um ofício, conhecer as coisas do mundo. Percebe-se aumento na desigualdade educacional entre os que farão o próximo ENEM, mas todos que fazem o ENEM, são desiguais em relação ao conjunto do Brasil sem escolaridade, deixados para trás antes de concluir o ensino médio.

Algumas raras escolas conseguiram oferecer um mínimo de aulas remotas a seus alunos, enquanto a imensa maioria ficou praticamente sem aprendizado, por falta de equipamentos e preparo dos professores. No entanto, considerando a péssima qualidade oferecida aos pobres, desde antes da epidemia, é possível dizer que a educação piorou ainda mais para os que tinham escolas de qualidade e ficaram com aulas remotas.

A covid devastou tanto a educação que pode ter diminuído a desigualdade, ao rebaixar a educação dos ricos. Foi como se houvesse um terremoto em uma cidade, destruindo a moradia de todos, mas diminuindo a desigualdade, ao nivelar por baixo, levando os bairros nobres a perderem suas casas, ficarem sem água e esgoto, como já estavam os bairros pobres. O terremoto não aumenta a desigualdade que já existia, agrava-a depois, na reconstrução que sempre começa acelerada pelos bairros nobres, onde já existiam casas, asfalto, água e esgoto, demorando a reconstrução dos bairros pobres. É isso que pode ocorrer agora com a educação, aumentando a desigualdade a níveis ainda piores do que antes da epidemia.

Nossa tarefa é iniciar a reconstrução do sistema devastado pela escola pública que atende à quase totalidade de nossas crianças. O caminho da reconstrução vai exigir uma estratégia para substituir os frágeis sistemas municipais por um robusto sistema público federal. Fazer a revolução que substituirá a atual “pedagogia teatral” por nova “pedagogia cinematográfica” que use recursos da teleinformática dos bancos de dados e de imagens, da inteligência artificial, dos efeitos especiais. 

O vírus devastou toda educação e mostrou uma desigualdade que já existia por nossa culpa. Aproveitemos para despertar à necessidade de o Brasil dar um salto na qualidade da educação e fazê-la equitativa, independentemente da renda e do endereço de cada criança.

*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília

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