quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Luiz Fernando Verissimo - Os tetos

- O Globo

De repente a palavra ‘presencial’ ganhou notoriedade

Cada era com seu vocabulário. De repente a palavra “presencial” ganhou uma notoriedade que antes não tinha. Presencial: significando na presença física de, em contraste com a ausência de, ou com a presença apenas virtual de. Uma palavra de muitos sentidos, perfeita para esta era de dissimulações, que só vendo, tocando e cheirando para crer.

Outra expressão que deve sua existência à era surgiu no mundo rarefeito do jargão econômico. Inventada, até onde eu sei, pelo ministro Paulo Guedes, que se sai melhor fazendo frases do que dirigindo a Economia. Guedes chama de “fura-teto” quem quer ultrapassar os limites da responsabilidade fiscal e se declara um defensor da inteireza do teto, ameaçada por gastadores com seus sonhos igualitários irrealistas. Em todo lugar em que os “fura-tetos” são demonizados, o capitalismo se penitencia, se penitencia, mas não muda. No fundo, o que se discute não é a defesa do sacrossanto teto, mas sua utilidade nos rituais de falsa penitência com que o capital protege sua alma junto com seus lucros, enquanto o sonho é eternamente adiado.

O livro “O capital no seculo XXI” é um tijolo de 700 paginas que seu autor, Thomas Piketty, atirou contra a confortável certeza de que é só dar tempo ao capital que ele se reformará sozinho, provando com estatísticas e gráficos (e sabendo-se o que se sabe do prontuário do capitalismo) que o milagre é improvável, e afundando no processo de ilusões social-democratas. Há pouco saiu outro tijolo do Piketty, este com mais de mil páginas, intitulado “Capital e ideologia”. Quem teve preparo físico para enfrentar o novo livro, como o economista Paulo Gurgel Valente, que fez uma valiosa leitura crítica, gostou do que leu, principalmente porque “Capital e ideologia” é mais abrangente do que o livro anterior, cobrindo mais história, geografia e economia — apesar de dar pouca atenção ao Brasil.

Piketty não tem problema em contrariar a ortodoxia marxista, mas deixa claro que é um “fura-teto” convicto. Sabe que pertence a uma minoria: pode contar nos dedos da mão invisível do mercado que os neoliberais tanto gostam de citar a quantidade de economistas do seu lado. Mas é um aliado precioso. Pelos seus tijolaços certeiros.

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