quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Maria Cristina Fernandes - Bolsonaro monta seu condomínio para 2022

- Valor Econômico

Escolha do presidente para a vaga no Supremo sugere uma lealdade compartilhada

A forma escolhida pelo presidente da República para anunciar sua nome para o Supremo Tribunal Federal fala mais do que o indicado em pauta. O ministro Gilmar Mendes recebeu um telefonema na tarde desta terça-feira do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que lhe avisou da ida de Bolsonaro à sua casa à noite. O presidente chegou com o desembargador Kassio Nunes a tiracolo para apresentá-lo ao dono da casa e ao ministro Dias Toffoli.

Como não houve anúncio oficial, o ministro Celso de Mello só deixará o cargo daqui a 12 dias e trata-se de um convite de Jair Bolsonaro, convém cautela. A presença de dois ministros do STF, do presidente do Senado e de um ministro da República (Fábio Faria) no encontro, porém, levou os presentes a considerarem o anúncio como uma decisão sem volta.

A escolha surpreendeu a todos porque sempre se considerou a lealdade como o critério-mor, tendo em vista as circunstâncias jurídicas que cercam o presidente e sua família. Some-se a isso o trauma petista que Bolsonaro tomou para si. Os governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff indicaram oito ministros dos 11 que estão no Supremo Tribunal Federal. Ainda assim, o habeas corpus de Lula foi rejeitado, em 2018, por seis votos a cinco. O ex-presidente só seria libertado um ano e meio depois quando o STF, já com Bolsonaro no poder, reviu a prisão em segunda instância.

Daí porque o ritual da escolha importa. A começar pelo portador. Ao escolher Alcolumbre para o papel, Bolsonaro torna-se credor do presidente do Senado em sua busca pela recondução ao cargo. A intenção do senador de forjar sua elegibilidade com uma mudança no regimento da Casa será contestada no Supremo, onde a presença de um ministro aliado pode pesar a favor da tese de que se trata de uma decisão que cabe ao Senado.

Ao levar Nunes à casa de Gilmar Mendes, e não à do presidente da Corte, Luiz Fux, Bolsonaro rende homenagem ao ministro que simboliza, de fato, o poder em Brasília. Sorteado para todos os casos-chave do tribunal, consulente, desde FHC, de quase todos os presidentes da República em apuros, à exceção daquela que foi derrubada, além de interlocutor privilegiado de negociações para desatar votações no Congresso, foi o único ministro a ir bater na porta do comandante do Exército, Edson Leal Pujol, quando a questão militar preocupava. Gilmar Mendes é o adversário que nenhum presidente da República quer ter.

Hoje ministro e presidente estão do mesmo lado, o do desmonte da Lava-jato. Gilmar Mendes começou a operacionalizá-lo quando Toffoli assumiu a Presidência da Corte, formatando, com Ricardo Lewandowski, a santíssima trindade do garantismo. Não tem, sobre Fux, a mesma ascendência e, por isso, a entrada de um ministro que venha a gravitar no seu entorno é tão crucial. Toffoli, até numa tentativa de ganhar alguma autonomia, já decidiu que não ocupará a vaga de Celso de Mello na segunda turma do Supremo, presidida por Mendes. A vaga, então, será do novato, e terá participação decisiva na composição da maioria que a presença do decano nem sempre tem garantido ao presidente da turma.

Mendes nunca foi um entusiasta do preferido do presidente para a vaga, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, seja pela escassa formação acadêmica do ministro, seja pela condução da Secretaria de Assuntos Jurídicos, hoje sob o chapéu da SG. Instância pela qual passam todos os documentos a serem assinados pelo presidente da República, a secretaria não foi capaz de conter as diatribes de Bolsonaro, que detém o recorde. na década, de presidente com o maior número de medidas provisórias devolvidas, rejeitadas e ineficazes. Em 2019, 54% das MPs se enquadraram nesta condição. O maior predicado de Oliveira, no entanto, e também seu maior obstáculo, é seu acesso direto ao presidente da República, condição almejada por qualquer ministro que tenha pendores para liderar a Corte.

Se abdicar de Oliveira, Bolsonaro sinaliza um pacto. Desembargador do Tribunal Federal da 1ª Região, Kassio Nunes não tem intimidade nem com Bolsonaro nem com Gilmar Mendes, ainda que conte com a simpatia do senador Flávio Bolsonaro. Recebeu o convite para a Corte num momento em que esperava cativar o presidente da República para a vaga que almejava no degrau abaixo, do Superior Tribunal de Justiça. Não há dúvida de que será credor de Bolsonaro e de seu filho, mas o presidente recebeu de graça do PT a lição de que aquela toga dilui os créditos com os quais é tecida.

Por isso, o presidente resolver aumentar o número de instâncias da qual o indicado é credor. Com o beija-mão da noite de terça-feira, ficou clara a deferência que o presidente da República quis prestar a Gilmar Mendes. Ao pinçar um desembargador, que chegou ao TRF-1 pelo quinto constitucional (vaga destinada a advogados), a partir da OAB do Piauí, acena ainda ao presidente do PP, senador Ciro Nogueira. Com isso, estende a lógica da lealdade não apenas para si, mas para o conjunto de forças com o qual pretende contar para chegar com musculatura a 2022.

A decisão de ontem, da sub-procuradora da República, Lindora Araújo, de desistir da denúncia contra o deputado Artur Lira (PP-AL), também colabora para a equação. Braço-direito de Augusto Aras, candidato à segunda vaga do Supremo, Lindora aliviou a barra de um candidato à presidência na Câmara e aumentou as perspectivas de poder de um partido coalhado de réus no Supremo, a começar pelo próprio Ciro Nogueira. E, finalmente, ao escolher um ministro do Piauí, Estado que teve seu último representante na Corte, Firmino Paz, há 50 anos, Bolsonaro adorna seu discurso para o Nordeste. Poderá dizer que deu ao tribunal seu único ministro. O último, o sergipano Carlos Ayres Brito, deixou a Corte há oito anos.

Se Kassio Nunes for confirmado no cargo, no entanto, nada poderá explicar melhor sua escolha do que a compreensão que Bolsonaro adquiriu do poder em Brasília. Grande parte dele reside na capacidade de indicar postos-chave nos tribunais por onde passam as grandes contendas nacionais. A escolha sugere um condomínio, com o qual pretende chegar a 2022 e ultrapassá-lo.

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