Depois de "A República das Milícias", de Bruno Paes Manso, fica difícil acreditar que será possível mudar o Brasil em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político a partir das urnas de 15 de novembro
Bruno Paes Manso já estava na reta final de “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (Todavia, 2018), livro que escreveu com Camila Nunes Dias, quando a vereadora carioca Marielle Franco foi morta, em março de 2018.
O
livro, construído partir de entrevistas com autoridades penitenciárias e
policiais, além de lideranças do PCC e de associações comunitárias, pretendia
ser um alerta para os pressupostos da política de segurança pública que, na
previsão dos autores, daria as cartas em Brasília com a estreia do
ex-governador Geraldo Alckmin no Palácio do Planalto.
O
livro se tornaria uma referência incontornável nos estudos sobre o crime
organizado no Brasil. Mostrou como a política de encarceramento em massa de São
Paulo, aliada aos arranjos que preservavam a capacidade de gerência da cúpula
da organização criminosa, embasavam a prolongada trégua nos índices paulistas
de homicídio.
Um
mês depois de seu lançamento, porém, Bruno Paes Manso sentiu-se atropelado pela
história. Vítima de um atentado em Juiz de Fora, o candidato do PSL, Jair
Bolsonaro, acabaria catapultado à Presidência da República. Com a eleição de
Bolsonaro, o autor concluíra que precisava começar a pensar em outro livro.
Desta vez, para contar como a cultura da violência miliciana, travestida em
apelo da lei e da ordem, havia se transformado na expectativa majoritária de
redenção do eleitorado nacional.
O
resultado, “A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro”
(Todavia, 2020), repete a fórmula de “A Guerra”, com entrevistas em
profundidade com chefes da milícia e do tráfico, autoridades policiais,
lideranças comunitárias, estudiosos de segurança pública e uma sensibilidade
aguçada para distinguir a evolução que moldara as comunidades do Rio em
contraposição àquelas da periferia de São Paulo, que percorre há mais de duas
décadas como jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Até
então, sua incursão de mais fôlego no Rio havia sido durante a cobertura que
fizera, para “O Estado de S. Paulo”, da intervenção policial no Morro do Alemão
durante o governo Sérgio Cabral, em 2007. Nas pesquisas para o livro foi
descobrindo um clientelismo que, ao contrário daquele que observara em São
Paulo, não havia enfrentado a concorrência do sindicalismo industrial ou das
comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. É ao entrar em Rio das
Pedras, na zona Oeste do Rio, que o autor encontra a chave para entender o
fenômeno exportado para o resto do Brasil com a eleição de 2018.
Fora
da caixinha dos estereótipos, encontra uma comunidade em tudo diferente da
Copacabana decadente em que costumava se hospedar. Vê uma comunidade
barulhenta, jovem, com letreiros chamativos a anunciar de médicos a lojas de
lingerie e restaurantes de sushi. A pujança mostrava o dinheiro posto em
circulação pelas milícias, que, em parceria com a polícia, se tornara donas de
parte dos negócios despojando receita do poder público e das grandes empresas
de gás, luz, transporte e internet sem precisar desperdiçar com armamentos como
nas favelas comandadas pelo tráfico.
A
comunidade é parte da jurisdição do 18º Batalhão da Polícia Militar do Rio, o
mesmo em que o sargento Fabrício Queiroz e o capitão Adriano da Nóbrega se
conheceram. O livro reconstitui a ficha criminal que construíram juntos sob a
proteção da família Bolsonaro e do Tribunal de Justiça do Rio.
Bruno
Paes Manso descreve uma Rio das Pedras marcada pelo coronelismo dos imigrantes
nordestinos, apesar de o primeiro chefe local se chamar Octacílio Bianchi e o
maior beneficiário político da propagação de seu modelo de empreendedorismo ser
um paulista de Eldorado que levou seus modos bandeirantes para a Presidência da
República.
Foi
1964 que deu às comunidades milicianas seu DNA. Com o golpe, a violência e a
tortura policial se aproximaram dos porões da ditadura e, juntos, enterraram a
utopia de nação que o Rio encarnava, com a sofisticação da bossa nova e a
genialidade do samba de morro. O livro escolhe o capitão do Exército Aílton
Guimarães Jorge, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras em 1962, como
símbolo da aliança entre bicheiros e policiais endossada pelo regime.
Guimarães
era protegido de oficiais envolvidos com o terrorismo de Estado que marcaria a
derrocada do regime. Com o planejamento de explosões em Agulhas Negras e numa
adutora da capital fluminense, o capitão Jair Bolsonaro se filiaria a esta
linhagem. Com a abertura, a entrada do insubordinado capitão na política se
daria pela legitimação dos crimes da polícia. “Em vez de lutar pela defesa da
pátria, a polícia passou a matar além do limite em nome do ‘cidadão de bem’”,
diz Bruno.
As
milícias, porém, não se beneficiaram apenas da proteção e das condecorações dos
Bolsonaro, mas da vista grossa que lhe fizeram todos os governantes do Rio, de
Leonel Brizola a Moreira Franco, passando pelo ex-prefeito Cesar Maia, que fez
de Rio das Pedras um curral de votos para a eleição do seu filho, Rodrigo, hoje
presidente da Câmara dos Deputados.
Com
as Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas pelo ex-governador Sérgio
Cabral, o tráfico foi expulso da zona sul, para limpar o cenário da Copa e da
Olimpíada. Nesse período, também se espraiaram as associações entre traficantes
e milicianos. Esta sociedade prosperou com o propósito de combater o Comando
Vermelho, organização nascida no presídio de Ilha Grande do convívio entre
presos comuns e políticos na década de 1970.
A
explosão da violência causada por esses conflitos e a busca do governo Michel
Temer por uma marca positiva levou à intervenção militar no Rio, marcada, logo
no seu primeiro trimestre, pelo assassinato de Marielle Franco. Bruno Paes
Manso levanta as hipóteses para o crime sem cravar em nenhuma delas - provocação
aos militares para mostrar quem manda no Rio, reação às denúncias da vereadora
contra a violência policial e retaliação ao então deputado estadual, hoje na
Câmara dos Deputados, Marcelo Freixo. O deputado teve uma atuação desabrida na
Assembleia Legislativa, da CPI das Milícias aos esquemas, comandados pelos
caciques locais do MDB, de distribuição de propinas de empresários de
transportes.
A
única aposta do autor é no poder do jogo de dissimulações envolvidas, que passa
até mesmo por telefonemas forjados entre suspeitos que se sabiam grampeados
para incriminar inimigos. Foi a reação de um deles, Orlando Curicica, miliciano
preso por homicídio e associação criminosa, que levou à prisão de Élcio Queiroz
e Ronnie Lessa. A partir dos relatórios a que teve acesso, Bruno Paes Manso
descreve as manobras contra a elucidação do crime que ruma para mil dias sem a
prisão de seus mandantes.
A
chegada ao Palácio da Guanabara de Wilson Witzel, outro paulista emigrado para
o Rio pelo sonho de uma carreira nas Forças Armadas, reincorpora à polícia
civil e militar, com status de secretarias, personagens afastados desde os
governos Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão.
A
queda de Witzel, que, de aliado, virara desafeto da família Bolsonaro, e a
posse do vice, Claudio Castro, promove alguns desses personagens. Alan
Turnowski, por exemplo, passa de braço direito a secretário de Polícia Civil,
com o apoio da família do presidente da República. Em outro depoimento de
Curicica ao qual o repórter Allan de Abreu, da revista “Piauí”, teve acesso,
Turnowski e o atual secretário da Polícia Militar, Rogério Figueredo, são
detalhadamente acusados de ligação com as tiranias paramilitares que ocupam a
cidade. Ambos negaram as imputações à revista.
O
pacote de rearranjos acordados entre o novo governador do Rio e os Bolsonaro
ainda passa pela substituição do procurador-geral do Ministério Público do Rio,
José Eduardo Gussem, cujo mandato acaba em dezembro. É Gussem quem tem, em
grande parte, garantido a autonomia da investigação do esquema de rachadinhas
no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do
Rio. A negociação que está em jogo na substituição de Gussem por um nome de
interesse da família presidencial passa pelo atendimento das demandas do
governador em relação à Superintendência da Receita Federal e à Polícia
Federal.
A
presença de Castro no governo do Estado é a blindagem com a qual a família
Bolsonaro conta como anteparo à ascensão do ex-prefeito Eduardo Paes
(Democratas) ou da delegada Marta Rocha (PDT), que substituiu Turnowski na
chefia da Polícia Civil, em 2011. Paes e Marta aparecem nas pesquisas como os
mais cotados para o lugar do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), aliado
do presidente. É cedo para dizer se a ascensão de um ou outro à Prefeitura
levará o DEM ou o PDT, dois anos depois, ao Palácio da Guanabara. Os grupos
políticos de ambos pagaram pedágio às milícias quando estiveram no poder, mas
não exerceram o poder em nome delas.
Como
mostrou o Mapa dos Grupos Armados do Rio, 57% da área da cidade está hoje sob
domínio das milícias. Esse avanço se deu ao longo de um governo federal que
flexibilizou o porte e afrouxou o controle de comercialização e sob
administrações locais que lhes franquearam espaços.
A República das Milícias, retratada por Bruno Paes Manso, chegou ao poder com Bolsonaro, mas o extrapola. Está entranhada no dia a dia das comunidades, dos serviços de transporte público às licenças de construção, cujos despachantes, nas Câmaras de Vereadores e nas prefeituras, serão definidos pelas urnas em 15 de novembro. Depois de ler o livro, fica difícil acreditar que seja possível mudar o país em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político.
O BRASIL TENDE A SE TRANSFORMAR NO CU DA MÃE JOANA.
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