sábado, 17 de outubro de 2020

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

O paradoxo brasileiro – Opinião | Revista Veja

Os acusados são soltos quando deveriam estar presos; e são presos, a depender do caso, quando melhor seria que estivessem soltos

No mundo da aviação, sabe-se que, por trás de todo acidente aéreo, há uma sequência de erros que explica o triste episódio. Quase sempre é uma sinistra combinação de falhas humanas com as de equipamentos. Se nem todos esses equívocos tivessem acontecido simultaneamente, a catástrofe seria evitada e as vidas que se perderam com a queda da aeronave poderiam ser preservadas. Guardadas todas as proporções, a libertação do traficante André do Rap tem semelhanças com a soma de imperfeições que leva um avião a se destroçar em solo. Membro graduado de uma das facções mais perigosas do Brasil, o criminoso se beneficiou de uma sucessão de desacertos, que inclui a perda de prazo para a prorrogação de sua prisão, passa pelo mau funcionamento dos sistemas do STF e culmina em uma tentativa inoportuna do ministro Marco Aurélio Mello de marcar posição. Uma diferença de apenas algumas horas e o delinquente ainda estaria na cadeia, lugar apropriado para quem desempenha sua atividade.

Mas além das falhas e brechas que permitiram a libertação de um malfeitor de alta periculosidade, a trajetória de André do Rap revela, numa perspectiva mais profunda, um outro mal que põe em risco a segurança dos cidadãos brasileiros: as engrenagens que abastecem as fileiras do PCC, a maior e mais ameaçadora facção criminosa do país. Aos 19 anos, ele foi preso pela primeira vez com trinta papelotes de cocaína, em Santos. Não portava armas nem tinha antecedentes criminais, mas, como estava acompanhado de um comparsa de 17 anos, recebeu um agravamento de pena por corrupção de menores, sendo levado para o Carandiru, o famoso presídio paulista extinto em 2002. Começava ali mais uma carreira no mundo do crime. Considerado inteligente e educado pelos colegas, André acabou sendo recrutado pelo PCC em troca de segurança na penitenciária. Fora dela, pagou sua dívida com a organização transformando-se em um de seus líderes.

Assim como aconteceu com André do Rap, a superpopulação carcerária brasileira, a terceira maior do planeta, com mais de 750000 presos, tem sido base fértil para o recrutamento feito por organizações criminosas. Alguns entram no sistema por delitos banais e, uma vez aliciados por esses grupos, tornam-se bandidos de alto calibre. Um exemplo é o de Edson Chaves de Brito, o Marlboro. Em 2005, foi detido por furtar seis carneiros e algumas galinhas em Mato Grosso do Sul. Hoje, é um dos principais membros do bando, condenado a 22 anos de pena por tráfico de drogas e roubo de estabelecimentos comerciais. Nesta edição, VEJA faz um mergulho no tema mostrando todo o panorama dessa complicada equação, que precisa ser desmontada urgentemente. Eis o resumo do paradoxo brasileiro: os acusados são soltos quando deveriam estar presos; e são presos, a depender do caso, quando melhor seria que estivessem soltos. Enquanto essa sequência de erros não for interrompida, as tragédias se repetirão.

Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709

A baderna legal – Opinião | Revista IstoÉ

Consolidou-se o descalabro. Mais cedo ou mais tarde aconteceria. Levado ao pé da letra, o penduricalho na legislação anticorrupção, aprovada recentemente, acabou por provocar uma inominável injustiça e, em consequência, revolta social. O movimento de ataque à Suprema Corte, por conta do ocorrido, é sem precedentes. Ninguém se conforma. E com razão. Sentimentos de perplexidade e indignação tomaram a maioria. O código contrabandeado para dentro do pacote anticrime que abriu a cela do narcotraficante André do Rap, chefão do PCC, a maior facção organizada de drogas no País, é de uma desfaçatez e operacionalidade inconcebíveis.

Para um sistema penal e legal caótico como o brasileiro, anotar a obrigação de se revisar prisões preventivas a cada 90 dias equivale a multiplicar o problema das ações por mil. Com processos abarrotados de recursos de habeas corpus, o Judiciário simplesmente travaria diante da missão hercúlea, caso seguida à risca. Pois o ministro Marco Aurélio Mello achou por bem se apegar a literalidade do texto, sem olhar a “capa” do processo (como disse), ou mesmo o histórico do criminoso e a sua capacidade de delinquir, para colocar nas ruas um marginal com duas condenações em segunda instância, que havia ficado foragido por seis anos, responsável por operações que, de uma só sentada, teria enviado mais de quatro toneladas de cocaína à Europa.

Marco Aurélio fez isso, basicamente, por que havia vencido o prazo de 90 dias para a renovação da preventiva. Burocracia pura. Ou seja, por mero decurso de tempo, uma figura do calibre delituoso de Andre do Rap ganhou a oportunidade de voltar a agir serelepe na vida da bandidagem em alta voltagem. O poder togado falhou, fragorosamente, na opção voluntariosa do ministro Mello. Registre-se que esse era um caso que cabia a sua colega de Corte Rosa Weber, e não a ele. Aponte-se, também, como alegam inúmeros juristas, que um condenado em segunda instância não possui mais o benefício da dúvida, sujeito a julgamentos que o livrem do xilindró. Mas o magistrado Marco Aurélio ignorou detalhes processuais e foi adiante na decisão.

Em qualquer lugar do planeta, alguém com tamanha folha corrida, que exibia quando preso, na mansão onde foi encontrado, dois helicópteros, iate, lancha, carros de luxo, dignos de um capo di tutti capi, conquistados à base de sangue, contrabando de drogas e toda sorte de ilegalidades, é tido como mega marginal, sendo trancafiado em cadeias de segurança máxima, sem chance de perdão ou atenuante. Por aqui, “do Rap” conseguiu sair sereno e candidamente pela porta da frente em uma cena que retrata à perfeição o desmanche do arcabouço legal anticrime no País. É de um surrealismo jurídico sem tamanho.

Como não dimensionar as consequências de tal ato, que mistura barbeiragem técnica, pendor midiático e imprudência de uma autoridade que, monocraticamente, tal qual um monarca, comete tamanha insensatez? Como exatamente alguém acha razoável adotar um veredicto assim, em casos como esse? Tudo começa lá atrás. Na seara política, que buscava brechas para interromper as longevas prisões da Lava Jato, verifica-se o pecado original. Parlamentares do Centrão maquinaram a artimanha, dominaram a votação e, com o beneplácito e endosso do mandatário Bolsonaro, levaram adiante o benefício matreiro que, evidentemente, abre os portões da impunidade principalmente para os vendilhões da Nação.

Podia não ter sido assim. O então ministro da Justiça Sergio Moro, que conduziu as negociações do projeto da Lei Anticrime, era contra. Alertou o presidente de forma veemente para o risco de soltura em massa e automática, caso o dispositivo vingasse. Foi ignorado. O pacote, desfigurado. As mexidas oportunistas na proposta original deram a senha pró bandidagem. Mesmo a permissão para a prisão de condenados em segunda instância ficou escanteada. A cleptocracia venceu. No rastro, um mutirão de soltura teve início. Andre do Rap não é, lamentavelmente, o único exemplo.

O ministro Marco Aurélio — sempre ele! —, que tempos atrás foi responsável também pela liberação do banqueiro Salvatore Cacciola (autor de um golpe financeiro milionário e que se escafedeu após a benevolência do magistrado), já soltou outros 79 criminosos pelo mesmo critério. Da experiência, uma lição implacável: enquanto a Justiça for considerada uma espécie de condomínio fechado, sujeita às interpretações subjetivas e distintas dos luminares da ciência legal, e não um patrimônio indiscutível, claro e objetivo erigido pela própria sociedade e com o seu endosso, não haverá, no Brasil, Justiça alguma. Esse casulo majoritariamente aristocrático, de apreciações e análises diametralmente opostas de um mesmo artigo, coloca em caos o sistema.

Da mesma forma, as tais deliberações monocráticas, em última instância, com hierarquias pronunciadas dignas de soberanos, são — como seguidamente demonstrado — discutíveis, por carregar impulsos quase impenetráveis e escolhas até passionais dos honoráveis juízes. Senão, vejamos: como explicar que, ato contínuo à deliberação de Marco Aurélio, o presidente do STF, Luiz Fux, tenha considerado adequado derrubar a tal liminar e, não satisfeito, em plenário da Corte, a mesma turma, majoritariamente, entendeu que a decisão do colega foi errada? Ou, para usar um termo mais harmonioso, inadequada? A barafunda no ambiente Judiciário está formada.

É assombroso que uma filigrana, meramente de ordem metodológica, que trata de procedimentos, aliás, sem propósito, seja capaz de tamanho estrago. Em conjunto para o desastre e dentro de um conceito garantista do texto, a retórica do ministro Marco Aurélio soa, por assim dizer, bisonha. Dispõe da virulência e da solidez dignas dos monumentos de barro. Trilhando ajaezadas metonímias e saltando com a devida destreza sobre os obstáculos do vernáculo, o magistrado ainda demonstra acreditar, piamente, que vem fazendo justiça.

Marco Aurélio é o verbo em pessoa, ainda que suas palavras circunstancialmente possam soar flácidas. Ele se presta ao papel de homem da lei rigoroso, com a toga cerimonial, mas sua eloquência parece promover, ao longo de sentenças de ontem e de hoje, sem constrangimento algum, o atendimento a demandas de poucos, em um sarau de privilegiados, no avarandado dos poderosos, contra o sentimento de correção do povo subalterno. Para os de fora, não há como afastar a sensação de um sistema legal de castas.

Já o eminente ministro Mello, talvez movido pelo senso de “noblesse oblige”, pressuponha ter uma imutável, quase instintiva, superioridade de discernimento. O problema é que o novelo do escabroso enredo não se esgota no veredicto em si. Foi levantada a participação de um ex-assessor do magistrado, que trabalharia no processo, insinuando suspeitas de favorecimento, que o ministro reputa como injúrias. Não seria o caso — mera pergunta — de se declarar impedido a julgar, pela proximidade com o advogado do réu? De tudo resta a crua e triste realidade, fruto da confusão armada: Andre do Rap já está foragido. Sumiu do radar, debandou.

Dizem, para o Paraguai ou vizinhanças e, claro, não vai atender a uma convocação de volta. Nem todo o aparato policialesco, inclusão na lista da Interpol, mobilização de agentes federais e estaduais serão capazes de reabilitar o dano e a consequência. Todo trabalho feito lá atrás foi por água abaixo. Há, não é de hoje, uma distância abissal entre a atuação dos investigadores e dos togados no balé da Justiça. Um grupo prende, o outro, via de regra, manda soltar. Sempre sob o argumento de brechas na lei.

De que adianta tamanho arcabouço regendo um sistema que favorece os maiores infratores? Acomodações que promovem libertação após um sexto da pena cumprida demonstram que muito ainda precisa ser mudado. Saem de esquizofrenias processuais como essa o fato de um ladrão de galinha poder ficar anos no sistema carcerário enquanto chefões da droga são lançados de volta às ruas em meses. Parece certo? Evidente que não. De uma canetada só, para desencanto, desassombro e desespero dos cidadãos de bem, que pagam seus impostos, um marginal de alta periculosidade voltou a ameaçar a sociedade. É essa a Justiça que queremos?

O Supremo não é legislador – Opinião | O Estado de S. Paulo

Como guardião da Constituição, em vez de flexibilizar o disposto na Lei 13.964/2019, o STF deveria ter exigido o mais estrito cumprimento da lei

Com especial habilidade, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, soube desfazer o que poderia se tornar uma crise de maior vulto, no caso do habeas corpus em favor de André do Rap. A finalidade da Justiça é dar solução aos conflitos, e não aumentá-los ou perpetuá-los.

O mérito do ministro Luiz Fux foi possibilitar uma rápida resposta do colegiado, colocando sob escrutínio do plenário do Supremo sua decisão de suspender a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio. Diante de um cenário no qual a Corte é diariamente questionada – e muitas vezes afrontada –, o fortalecimento institucional do STF inclui necessariamente o fortalecimento de sua colegialidade.

Por 9 votos a 1, o plenário do STF manteve a prisão preventiva de André do Rap, confirmando a decisão do ministro Luiz Fux. Os votos ressaltaram o caráter excepcionalíssimo da possibilidade de o presidente da Corte suspender ato jurisdicional de outro ministro do STF, como ocorreu no caso. A presidência do tribunal não é órgão revisor, e o que ocorreu neste caso não é a regra. As exceções devem continuar sendo exceções.

Se é positivo o caráter colegial da resolução do caso – afinal, o STF é um órgão colegiado –, é certo também que o conteúdo da decisão merece ressalva. O entendimento fixado pela maioria dos ministros do Supremo não apenas acrescenta elementos inexistentes na lei, como acaba por excluir precisamente uma das principais inovações que o Poder Legislativo trouxe com a Lei 13.964/2019 – a ilegalidade de toda prisão preventiva que não é renovada periodicamente.

O Código de Processo Penal diz: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal” (art. 316, § único). Já o Supremo disse: a inobservância da reavaliação no prazo de 90 dias não implica a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos.

Assim, pela decisão do Supremo e em sentido contrário ao que determinou o Congresso, a prisão preventiva que se estende no tempo sem ser renovada perde a conotação categórica de ilegalidade. Fosse de fato ilegal, como dispõe a Lei 13.964/2019, haveria de ser concedida a ordem de habeas corpus em favor de quem está preso preventivamente sem a devida reavaliação periódica dos fundamentos.

Na tentativa de justificar a decisão do Supremo, alegou-se que os ministros fizeram uma interpretação sistêmica do Código de Processo Penal, adequando a literalidade da lei ao ordenamento jurídico como um todo, em especial aos princípios constitucionais relativos à ordem pública. Chama a atenção, em primeiro lugar, a proximidade dessa tese com o ativismo judicial, postura habitualmente condenada por quem agora defende o dever do Supremo de matizar as consequências da Lei 13.964/2019.

O equívoco da decisão do STF não foi, no entanto, uma suposta aplicação sistêmica da lei. O problema foi precisamente ignorar o sentido do art. 316, § único do Código de Processo Penal, cujo objetivo não é “soltar bandido”, tampouco impedir o cumprimento de prisões preventivas fundamentadas. Ao fixar a ilegalidade das prisões preventivas que se estendem no tempo sem a devida renovação, a Lei 13.964/2019 veio exigir que os órgãos do sistema de Justiça funcionem adequadamente. Essa é a interpretação literal, teleológica e sistêmica da lei.

Consciente das resistências e dificuldades para implantar um sistema de Justiça que respeite de fato a liberdade, o legislador fez uma clara opção. Fixou de forma inequívoca a ilegalidade do que não é feito corretamente na tentativa de que tudo seja realizado em conformidade com a lei. Por isso, como guardião da Constituição, em vez de flexibilizar o disposto na Lei 13.964/2019, o Supremo deveria ter exigido o mais estrito cumprimento da lei – em respeito ao Legislativo e em respeito à liberdade protegida pela lei. Corte constitucional não redige lei.

 

Despudorados – Opinião | O Estado de S. Paulo

É fato que o presidente Jair Bolsonaro precisa escolher melhor suas companhias

Tem tudo para figurar em lugar de destaque da antologia política nacional a história do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado pela Polícia Federal (PF) com dinheiro vivo na cueca durante uma batida. Se serve para alimentar a conversa de bar e as piadas de duplo sentido nas redes sociais, o episódio deveria na verdade envergonhar todos os brasileiros, a começar pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, não somente pelo contexto constrangedor do flagrante em si, mas principalmente por envolver um parlamentar que era um dos líderes do governo no Congresso e por integrar um escândalo de desvio de dinheiro destinado ao combate à pandemia de covid-19. 

Contudo, o presidente Bolsonaro limitou-se a dizer: “Aconteceu esse caso, lamento”.

Bolsonaro dedicou-se muito mais a tentar se desvencilhar do escândalo. “O que dói é você trabalhar igual a um desgraçado e uns idiotas te acusarem de corrupção”, declarou o presidente a simpatizantes. Em outra oportunidade, disse: “Esse caso não tem nada a ver com o meu governo. Meu governo são os ministros, as estatais e os bancos oficiais”. Atribuiu a escolha do senador Chico Rodrigues como vice-líder do governo no Senado a “líderes partidários”.

Não se sabe a que “idiotas” o presidente fez referência, mas o fato é que ninguém sério acusou o governo de corrupção, ao menos por ora. Contudo, também é fato que o presidente precisa escolher melhor suas companhias, especialmente aquelas que representarão o governo em posições de destaque, como era o caso do senador Chico Rodrigues.

De nada adianta Bolsonaro dizer que a ação da polícia contra o senador “é a comprovação da continuidade do governo no combate à corrupção em todos os setores da sociedade brasileira, sem distinção ou privilégios”, como ressaltou a Presidência em nota oficial.

Por essa lógica, as administrações petistas também teriam que ser louvadas por “combater” a corrupção, em vista das inúmeras diligências da PF contra corruptos que integravam ou orbitavam o governo na época. Aliás, até o discurso é o mesmo. Em 2015, quando o País começou a tomar conhecimento da extensão do petrolão, esquema bilionário de desvios da Petrobrás em favor do PT e de partidos governistas, a então presidente Dilma Rousseff disse que seu governo tinha a “coragem” de enfrentar a corrupção, ao promover uma legislação para endurecer penas e combater a impunidade de quem embolsa recursos públicos.

Trata-se, obviamente, de uma retórica mambembe. Se o presidente Bolsonaro está mesmo interessado em combater a corrupção e de não se ver identificado com o que há de pior na política brasileira, então deve começar a se cercar de gente mais qualificada.

O senador Chico Rodrigues é amigo de Bolsonaro há duas décadas. O presidente já chegou a dizer que mantinha com o parlamentar “quase uma união estável”, e o senador emprega em seu gabinete um primo dos filhos de Bolsonaro, para fazer sabe-se lá o quê. É desses parlamentares inexpressivos que se tornam mais conhecidos pelos escândalos em que se envolvem do que pelos serviços prestados.

Enquanto aceitar alegremente a companhia de políticos desse naipe, dos quais o Centrão está cheio, o presidente Bolsonaro continuará a ver seu governo sob suspeita, e suas juras de combate à corrupção serão consideradas tão autênticas quanto as dos petistas quando se emporcalhavam em traficâncias.

O problema é de origem. Bolsonaro é egresso do mesmo baixo clero que produz os tipos que se contentam com rachadinhas e quejandos. Rebaixou a Presidência ao nível dessa ralé política, que nem escândalos dignos do nome conseguem produzir – em vez de roubalheira na maior estatal do País, como fizeram os sofisticados petistas, entregam-se a afanar salários de funcionários fantasmas e a guardar dinheiro nas partes íntimas.

O aviltamento da política, que sob o petismo causou revolta, sob o bolsonarismo causa profunda vergonha. O episódio do dinheiro na cueca de um senador amigo do presidente e vice-líder do governo é, em muitos aspectos, uma ilustração adequada disso.

 Muita dívida, muitas dúvidas – Opinião | O Estado de S. Paulo

Sobra dívida e falta um compromisso claro com a gestão fiscal responsável

O Brasil gastaria toda a produção de um ano – soja, milho, automóveis, aviões, sapatos, serviços domésticos, transportes, sorvetes, vestidos, jogos de futebol, tubaínas, bicicletas, celulares, etc. – se fosse preciso liquidar a dívida pública em um só pagamento. O governo geral vai terminar 2020 devendo o equivalente a 100% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo as estimativas mais confiáveis. A relação ficará pouco acima de 100% nos anos seguintes, pelo menos até 2025, de acordo com projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI). O endividamento é muito mais alto que o de países pares do Brasil, lembra o secretário do Tesouro, Bruno Funchal, acrescentando: “É um alerta”.

Não há margem, disse ele, para o governo errar na gestão das contas públicas. A mesma advertência foi feita pelo presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, em outro ambiente. Qualquer política produzirá mau efeito no mercado, se indicar mudança do regime fiscal ou maior demora na correção das contas públicas. Qualquer ação desse tipo, afirmou, “vai refletir-se na credibilidade do País e, por consequência, na vontade do investidor de aplicar recursos” no Brasil.

Nenhum dos dois, Campos Neto ou Funchal, falou de um perigo remoto ou meramente hipotético. As incertezas sobre a condução das contas públicas são notórias no dia a dia do mercado, nas oscilações da bolsa de valores, na evolução dos juros futuros e na instabilidade cambial, com o dólar rondando e às vezes superando a cotação de R$ 5,60, cerca de 40% mais alta que a do começo do ano.

A ampla diferença entre a dívida pública do Brasil e a dos “pares”, apontada por Funchal, aparece com muita clareza nas informações do FMI. O contraste, já bem visível em anos anteriores, torna-se mais dramático depois do enfrentamento da covid-19.

No Brasil, a dívida bruta do governo geral deve passar de 89,5% do PIB em 2019 para 101,4% neste ano e 102,8% em 2021. A relação continuará subindo e deverá atingir 104,4% em 2025. Nas economias emergentes e de renda média, o endividamento médio deve atingir 62,2% em 2020 e 71,1% dentro de cinco anos, de acordo com as estimativas do Fundo. Em muitos países a relação dívida/PIB diminuirá nos próximos anos. Em outros, será firmemente contida, depois do choque de 2020.

Os dados fiscais passaram a ter mais peso nas decisões de política monetária, observou Campos Neto, embora as projeções e expectativas de inflação continuem sendo a referência mais importante para o BC. Mas a variável fiscal afeta as avaliações do mercado e, portanto, tende a influenciar a evolução dos juros. O mercado, disse o presidente do BC, entendeu a intenção do Executivo de cuidar da questão dos gastos sociais depois das eleições deste ano. Por isso, mais importante que o tempo é saber como será “a convergência fiscal daqui para a frente”.

Mas esse comentário foi feito no meio de outubro, quando nem sequer se pode falar com alguma segurança sobre o Orçamento federal de 2021. Questões importantes para o futuro das contas públicas permanecem nebulosas, embora o ministro da Economia, Paulo Guedes, tente criar a imagem de uma administração com rumos bem definidos.

Ele tentou, por exemplo, transmitir essa imagem na declaração preparada para a reunião do principal órgão político do FMI, o Comitê Monetário e Financeiro Internacional. O texto menciona reforma tributária, desindexação, desvinculação de gastos, privatizações, fim do crédito subsidiado, “inequívoca sustentabilidade fiscal” e manutenção do teto de gastos.

A mensagem talvez seja levada a sério no FMI. Do lado de cá, o ministro precisa vender a ideia da disciplina fiscal a um presidente concentrado em interesses pessoais. Além disso, a pauta tributária continua mal explicada. A parte conhecida inclui a simplificação de alguns tributos federais, a eliminação de encargos trabalhistas e a recriação da abominável CPMF. Quem administra uma dívida igual ou superior a 100% do PIB deveria pensar em algo mais sério e mais convincente.

Brasil não pode desprezar a vacina chinesa – Opinião | O Globo

É inadmissível que disputas políticas impeçam acesso da população aos imunizantes

Desde que o novo coronavírus pôs o mundo em quarentena, o maior desafio da Ciência passou a ser a busca por uma vacina contra a Covid-19. Mesmo antes que elas ficassem prontas, começou a corrida por imunizantes que ainda não passam de apostas, algumas bastante promissoras, outras nem tanto. Países ricos se adiantaram para garantir mais de um bilhão de doses a seus cidadãos, sem pudor em aderir de modo explícito ao “nacionalismo das vacinas”.

Embora não integre o clube dos ricos, o Brasil também entrou na corrida. Em junho, o governo anunciou parceria com a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca, que desenvolvem uma das vacinas em fase final de testes. O acordo, de R$ 1,9 bilhão, prevê o compartilhamento de tecnologia com a Fiocruz. A expectativa é que, se a vacina for aprovada nos testes, sejam fabricadas 140 milhões de doses no primeiro semestre do ano que vem.

Depois de muita relutância, o país aderiu também ao Covax, o programa global da Organização Mundial da Saúde (OMS) destinado a apoiar o desenvolvimento das vacinas, financiar a sua produção e garantir uma distribuição equânime. O Brasil entrará com R$ 2,5 bilhões no consórcio que reúne mais de 172 países.

São decisões importantes, sem dúvida. Mas as iniciativas precisam ser as mais amplas possíveis, porque é difícil saber que apostas serão bem-sucedidas. É aí que começa o problema. O Ministério da Saúde reluta em pôr suas fichas na chinesa CoronaVac, desenvolvida pela empresa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo. Ela é a vacina mais avançada em fase de testes no Brasil.

Em carta enviada ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) pediu que o programa de imunização do governo federal inclua a CoronaVac, que pode estar disponível em dezembro, antes da vacina Oxford/AstraZeneca, prevista para abril de 2021.

O governo de São Paulo diz ter garantido 61 milhões de doses numa parceria com a Sinovac, mas argumenta que a ampliação da oferta para distribuição no SUS não será possível sem recursos federais. O secretário-executivo do ministério, Élcio Franco, afirmou que o governo federal não descarta nenhuma possibilidade: “A vacina do Butantan está nessa lista, em momento algum se afirmou algo diferente disso”.

Espera-se mesmo que o governo Bolsonaro não esteja colocando questões político-ideológicas acima da saúde pública. Não importa se o governador de São Paulo, João Doria, é adversário de Bolsonaro nas urnas, ou se o presidente alimenta teorias conspiratórias. Em seu livro “Um paciente chamado Brasil”, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta conta que Bolsonaro acreditava que a China tinha inventado a pandemia e que o embaixador chinês estava aqui para derrubá-lo.

Não se pode permitir que a vacinação contra a Covid-19 seja contaminada por fantasias ou ideologias. Trata-se de decidir o que é mais adequado para proteger os brasileiros. Quanto mais opções, melhor.

A responsabilidade das redes sociais na campanha americana – Opinião | O Globo

Ao filtrar denúncia questionável contra Joe Biden, o Facebook agiu com mais sensatez que o Twitter

É esperado que, na atual fase da campanha eleitoral americana, surjam denúncias questionáveis. É o caso da publicada com estardalhaço pelo tabloide “New York Post” contra o candidato democrata Joe Biden. Com base num e-mail de autenticidade e origem duvidosas, o jornal atribui a Hunter Biden, filho de Joe, a intermediação de um encontro entre um executivo da empresa ucraniana de gás Burisma e o pai, então vice-presidente.

Não é de hoje que o ex-vice Biden é acusado de ter pressionado a Ucrânia a suspender uma investigação sobre a Burisma, em cujo conselho o filho trabalhava. Foi o telefonema em que Donald Trump tentou convencer o presidente ucraniano a investigar tal relação que levou ao impeachment na Câmara. O “New York Post” cita como fontes Rudolph Giuliani, advogado de Trump, Steve Bannon, guru da extrema-direita, e até o FBI, que primeiro teve acesso aos e-mails.

Biden já negou a história reiteradas vezes. Sua campanha apresentou provas de que o encontro não ocorreu. Vários furos foram apontados na origem do e-mail, atribuída a um técnico que afirmou ter tido acesso ao computador de Hunter deixado no conserto.

A fragilidade da acusação fez com que Twitter e Facebook reduzissem a exposição da notícia — o primeiro, barrando por completo a disseminação; o segundo, determinando que checadores independentes verificassem o que havia sido publicado e restringindo a circulação do conteúdo.

Há aspectos positivos no episódio. Ele mostra que as redes sociais não podem mais se furtar à responsabilidade editorial pelo conteúdo que disseminam. Parecem ter ficado definitivamente para trás os tempos de tolerância com as campanhas de desinformação. Mas a reação do Twitter foi desproporcional. O CEO da empresa, Jack Dorsey, terminou sendo intimado pelos republicanos a depor no Congresso, sob a acusação de ter censurado informações que não lhe agradam. Chegou a pedir desculpas pela decisão.

O Facebook tomou uma decisão mais compatível com os princípios que tem defendido, ao reduzir a exposição do conteúdo e promover a checagem, mas não bloqueá-lo completamente. É uma atitude mais sensata diante das características intrínsecas das redes sociais e das circunstâncias do caso.

As denúncias contra Biden podem não passar mesmo de propaganda promovida pelo trumpismo. Mas as boas práticas jornalísticas — que devem ser exigidas das redes como de qualquer veículo de imprensa — recomendam que elas sejam checadas e expostas, não bloqueadas ou censuradas.

Estado alterado – Opinião | Folha de S. Paulo

Série mostra como país fica para trás no debate sobre políticas para as drogas

Uma das políticas em que o Brasil anda mais atrasado é a descriminalização do uso de drogas. Tentativas modestas de arejar o tratamento da questão sob o prisma da saúde pública tropeçam na mescla de obscurantismo e conservadorismo iliberal, exacerbada agora pelo governo de Jair Bolsonaro.

Prevalece no país a ênfase na repressão ao tráfico, tornado tão mais rentável quanto mais cruenta e prolongada a chamada guerra às drogas. Também fracassada, pois nem a venda nem o consumo se reduzem, multiplicam-se as mortes em confronto com a polícia e entre facções, e as cadeias superlotadas realimentam a violência.

O fiasco nacional ressalta da série Estado Alterado, nesta Folha, que comparou ao longo de dois meses as políticas de drogas na Europa, na Ásia e nas Américas.

O oitavo e último capítulo contemplou o Brasil e retratou as favelas do Rio como emblema do enfrentamento que resulta em vítimas inocentes do fogo cruzado e no encarceramento ou na morte violenta de jovens, em geral negros.

Em contraste, Uruguai e Portugal avançam na descriminalização, ainda que adotando modelos diversos, com percalços e sucessos que se devem examinar detidamente. Empresas de Israel faturam com avanços tecnológicos no setor de maconha medicinal, enquanto o varejo no estado americano do Colorado se diversifica.

Em Ohio, a polícia se torna promotora de saúde ao bater de porta em porta para oferecer tratamento e reabilitação a dependentes de opioides. Agentes circulam com spray nasal de naloxona, medicamento que pode desviar uma pessoa da morte certa por overdose, causadora de mais de 70 mil óbitos anuais nos Estados Unidos.

No Brasil, Osmar Terra, então ministro da Cidadania, censurou pesquisa da Fiocruz em 2019 por não confirmar a suposta epidemia de crack de que fazia cavalo de batalha e por mostrar que o problema maior é o álcool. A Anvisa autorizou medicamentos à base de maconha, mas vedou seu plantio, impondo custosas importações.

Desde 2006 o consumo individual não deveria redundar em prisão, mas policiais e juízes enquadram como traficantes os portadores pobres e negros, condenando-os ao abrigo de facções que dominam penitenciárias. O Supremo Tribunal Federal posterga desde 2015 julgamento sobre o tema.

Na atual conjuntura política, só o Congresso ou o STF poderiam dar impulso ao debate. Mas parlamentares e ministros não parecem empenhados em levar à frente essa pauta verdadeiramente liberal.

Pontapé inicial – Opinião | Folha de S. Paulo

Após promessa de privatização, Bolsonaro utiliza TV estatal em jogo de futebol

O discurso bolsonarista sempre denunciou o aparelhamento do governo pela esquerda, por militantes, por ONGs. Agora uma das grandes preocupações do presidente é aparelhar as instituições com seus seguidores, amigos e parentes.

A intervenção do governo na transmissão de um jogo da seleção brasileira, enfim veiculado pela estatal TV Brasil, constitui um experimento da politização indevida de um recurso público —aliás, já desperdiçado de todo modo.

Na campanha, como eleito e durante seu governo, Jair Bolsonaro disse que a Empresa Brasileira de Comunicação deveria ser extinta ou privatizada, pois dava prejuízo, não tinha audiência e era dominada por esquerdistas, além de contar com excesso de funcionários, o que é decerto verossímil.

Depois de reticências e adiamentos devidos a conflitos intestinos do Executivo, a EBC, que inclui a TV Brasil, emissoras de rádio e agência de notícias, foi incluída em maio no programa de desestatização.

No fim de setembro, o plano de venda da empresa foi cancelado por Fábio Faria, ministro das Comunicações. A pasta fora recriada como parte do esforço de aproximação do Planalto com partidos fisiológicos no Congresso. A EBC ficaria, então, apenas mais “enxuta”.

O confronto entre Brasil e Peru pelas Eliminatórias Sul-Americanas da Copa do Mundo não seria transmitido pela televisão aberta, devido a impasses comerciais, mas apenas por canais de internet pagos.

O secretário-executivo das Comunicações, Fábio Wajngarten, propagandista entusiasmado de Bolsonaro, cuidou das negociações de última hora que permitiram a veiculação da partida pela TV estatal, acertada pouco mais de uma hora antes do seu início.

Durante o jogo, o narrador mandou “abraço especial” para Bolsonaro. No intervalo, houve boletins oficialescos de notícias.

Comparadas ao extremismo ideológico de outras repartições e ministérios, tais intervenções parecem menores, mas são reveladoras.

Como é corriqueiro na história, o candidato um dia crítico do uso de recursos públicos para propaganda pessoal e partidária logo se vale desses meios uma vez no poder.

O aparelhamento ontem repudiado é a boquinha do militante ou do bajulador de hoje. Planos de desestatização são abandonados em nome da conveniência de ter aliados e votos no Congresso.

Além do mais, intervenções no universo das comunicações podem ser instrumento para espezinhar ou ameaçar empresas desafetas do poderoso de turno. A história se repete com Bolsonaro.

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