domingo, 25 de outubro de 2020

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

A sociedade sabe o que quer – Opinião | O Estado de S. Paulo

É alentador verificar que 85,3% dos brasileiros pretendem se imunizar quando houver uma vacina contra a covid-19.

A revista científica Nature publicou um estudo que revela que 85,3% dos brasileiros pretendem se vacinar contra a covid-19 “se um imunizante comprovadamente seguro e eficaz estiver disponível”. O alto porcentual de aceitação da tão esperada vacina no Brasil só é menor do que o apurado na China (88,6%). O achado faz parte de um levantamento feito por especialistas dos Estados Unidos e da Europa com 13.400 pessoas nos 19 países mais afetados pela pandemia. Em média, 72% dos entrevistados disseram aceitar um imunizante contra o novo coronavírus sob aquela condição, e 28% o recusariam ou teriam algum receio de tomá-lo.

“O porcentual do Brasil não é uma surpresa, vários outros estudos já mostraram a mesma coisa”, disse ao Estado a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações. “Os brasileiros confiam em vacina, entendem que a vacinação é algo importante”, disse a médica.

De fato, o resultado da pesquisa com os brasileiros não surpreende. É o retrato da consciência da Nação. Neste penoso curso da pandemia, que já custou a vida de quase 160 mil de nossos concidadãos, a sociedade deu mostras de independência em relação às diatribes e mistificações do presidente da República em sua caótica condução da emergência sanitária. Tampouco se deixou levar acriticamente pela insanidade que grassa no esgoto das redes sociais. Nos corações e mentes da esmagadora maioria dos cidadãos, as vozes da ciência e o instinto de preservação calaram mais fundo do que a retórica política e a negação da realidade.

Nos momentos mais dramáticos da pandemia no País, as medidas de segurança preconizadas por médicos e cientistas – como o correto uso de máscaras, o distanciamento social e a higienização das mãos – foram adotadas por um bom número de pessoas, considerando a dimensão continental do Brasil. Fato é que houve, sim, vários casos de flagrante desrespeito às orientações médicas, com registro de aglomerações em praias, ruas e bares a partir de um determinado momento e máscaras sendo usadas incorretamente até hoje. Mas, em geral, houve engajamento de grande parte da sociedade em um comportamento seguro que, se não foi suficiente para impedir o alto número de mortes, ao menos impediu que a tragédia no País tivesse uma dimensão ainda mais soturna.

A pesquisa publicada pela Nature também indica o quão descabida é a discussão sobre a obrigatoriedade ou não de vacinar os cidadãos contra a covid-19. Resta evidente que a imensa maioria dos brasileiros vai se vacinar voluntariamente assim que um imunizante seguro e eficaz – qualquer um dos que estão em teste – esteja disponível. O brasileiro confia em vacina, como já foi bem dito. E essa confiança foi conquistada ao longo de muitos anos. Não é algo assim tão fácil de abalar.

O Brasil é uma referência mundial em imunização. Por meio do Programa Nacional de Imunizações (PNI), são aplicados gratuitamente cerca de 300 milhões de doses de vacinas todos os anos, contra dezenas de doenças. São vacinas absolutamente seguras e eficazes. Se hoje os brasileiros são mais saudáveis e vivem mais – sobretudo as crianças –, isso se deve a programas como o PNI, com imunizantes produzidos pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, e pelo Instituto Butantan, em São Paulo. Joias do Sistema Único de Saúde (SUS).

A vacina contra o novo coronavírus, quando vier, seguramente terá o mesmo grau de confiabilidade de todas as outras que são produzidas pelos dois respeitáveis laboratórios. A sociedade, em sua maioria, sabe disso. E sabe o que quer. Poucas coisas são mais essencialmente humanas do que o desejo de proteção para si e para os seus. Ao fim e ao cabo, é esse sentimento que prevalece sobre todas as outras coisas.

Tudo indica que uma vacina contra a covid-19 começará a ser oferecida à população em breve. É alentador verificar a adesão consciente da maioria dos brasileiros ao imunizante. Enquanto isso, resta manter os cuidados básicos, já amplamente conhecidos, e confiar no trabalho dos cientistas.

O SUS em perigo – Opinião | O Estado de S. Paulo

Orçamento menor previsto para a Saúde pode levar sistema ao colapso em 2021.

A pandemia de covid-19 realçou de forma dramática a importância do Sistema Único de Saúde (SUS). Basta dizer que o SUS é o único refúgio para 7 em cada 10 pessoas que precisam de atendimento médico no Brasil. Não fosse a rede de atendimento do SUS em todo o País, a maior tragédia sanitária que se abateu sobre nós em mais de um século seguramente teria uma dimensão ainda mais soturna do que a registrada até o momento. Já são 5,3 milhões de casos confirmados de covid-19 e mais de 154 mil mortos.

Entre o fim de julho e o início de agosto, no período mais difícil da evolução da pandemia no Brasil, o Estado publicou uma série de editoriais que não apenas abordavam o papel central desempenhado pelo sistema público de saúde no socorro aos doentes, como também os grandes desafios impostos ao SUS pelo novo coronavírus, além, é claro, das deficiências crônicas do sistema, como a desatualização da tabela de procedimentos e a falta de investimentos. Em suma, avizinha-se uma tempestade perfeita que poderá levar o SUS ao colapso em 2021 se nada for feito para reverter essa nefasta tendência.

O Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) de 2021 prevê R$ 123,8 bilhões para a saúde. O valor representa uma queda de cerca de R$ 40 bilhões em relação ao orçamento da área aprovado para este ano, considerando no cálculo o aporte dos créditos extraordinários que foram aprovados para o combate à pandemia.

Os recursos previstos são insuficientes até mesmo para o custeio dos serviços regulares prestados pelo SUS, há muito subfinanciado. Especialistas em gestão de saúde pública ouvidos pelo jornal Valor alertaram para o fato de que a pressão sobre o SUS decorrente da pandemia ainda não cedeu por completo e a ela se somará, em breve, a retomada de atendimentos eletivos que foram sustados em 2020 pelo receio de muitos pacientes de acorrer aos hospitais e contrair o novo coronavírus. “O risco de colapso do SUS não é mais devido à covid-19 apenas, mas também pela falta de recursos para suprir demandas não atendidas este ano e que devem ter consequências no ano que vem”, alertou o médico sanitarista Adriano Massuda, professor da Fundação Getúlio Vargas.

Além desses dois problemas, que já são alarmantes por si sós – os reflexos da pandemia sobre o SUS, que ainda vão perdurar por muito tempo, e a retomada dos atendimentos represados –, outros dois não podem sair do radar de governantes e parlamentares. O primeiro é a mudança demográfica da população brasileira, que envelhece. Isso aumenta a complexidade dos atendimentos prestados no âmbito do SUS e, consequentemente, os seus custos. Outra fonte de pressão sobre o sistema público de saúde é o aumento do número de usuários em decorrência da crise econômica. É cada vez maior o número de brasileiros que deixam de pagar por um plano de saúde particular e passam a depender exclusivamente do SUS.

Por todas essas razões, é absolutamente inconcebível que o SUS receba menos recursos em 2021 do que tem recebido neste ano. A menos que a destruição definitiva de uma das maiores conquistas da sociedade brasileira seja o desiderato dos que têm em suas mãos a capacidade de agir agora para evitar o pior logo adiante. Não é crível que seja este o espírito que anima homens e mulheres no Executivo e no Congresso.

Do ponto de vista material, o SUS foi bastante aparelhado durante a pandemia. De nada adiantará este legado se não houver recursos para manter os equipamentos funcionando e servindo aos pacientes. Não menos importante é o cuidado que se deve ter com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas e todos os demais profissionais da área da saúde que atuam no SUS e não têm sido devidamente valorizados.

Ter um sistema público de saúde universal e gratuito foi um inequívoco desejo da sociedade, a ponto de ser inscrito na Constituição. Isso custa muito dinheiro. Mas custo ainda maior – imensurável – seria não o ter. Cabe ao Executivo e ao Legislativo encontrar as soluções para fazer valer um direito de todos os brasileiros.

A pandemia e as disparidades na educação – Opinião | O Estado de S. Paulo

A crise emperrou o principal motor de crescimento e mobilidade social.

A pandemia não apenas teve um impacto imediato sobre as desigualdades – seja entre os países mais ricos e os mais pobres, seja, dentro de cada país, entre as classes mais ricas e as mais pobres –, como emperrou brutalmente o principal motor de crescimento econômico e mobilidade social: a educação. O ensino remoto, além de provocar um déficit generalizado no aprendizado, aumentou a distância entre os alunos com melhor e pior desempenho e entre os alunos ricos e os pobres.

“Quanto mais pobre é o indivíduo, menor é a frequência na escola, menor a quantidade de exercícios recebidos e, para piorar, menor o tempo dedicado aos exercícios recebidos”, conclui o estudo da FGV Social Tempo para Escola na Pandemia. Pelas métricas dos pesquisadores, os alunos mais pobres são 633% mais afetados pela falta de oferta de atividades escolares que os mais ricos.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece jornada diária de quatro horas. Mas durante a pandemia a jornada ficou em cerca de 2,3 horas. Dos 30 milhões de estudantes entre 6 e 15 anos, a FGV Social calcula que cerca de 4 milhões (13,5%) não receberam qualquer atividade para ensino remoto. Entre os adolescentes de 16 e 17 anos, foram 17,6%. Esse apagão está massivamente concentrado nas classes baixas e nos Estados mais pobres.

A falta de oferta se dá pela falta de conectividade, de dispositivos digitais e de envio de material por parte da rede de ensino. Segundo o Ipea, 16% dos alunos do Ensino Fundamental (cerca de 4,35 milhões) e 10% dos alunos do Ensino Médio (780 mil) não têm acesso à internet. Mas, enquanto quase 100% dos estudantes da classe A possuem acesso, nas classes D e E são apenas 40%. No mundo todo os governos buscaram compensar carências como essas combinando o uso da internet com uma programação educacional via TV e rádio, além da distribuição de materiais impressos. No Brasil, apesar de rádio e TV terem penetração em 96% dos domicílios, só 11 Estados se mobilizaram para disponibilizar conteúdo educacional por meio dessas mídias.

Às carências crônicas das redes de ensino municipais e estaduais soma-se o absenteísmo contumaz do Ministério da Educação. Instado sobre a desigualdade educacional que afeta estudantes sem acesso à internet, o ministro Milton Ribeiro lavou as mãos: “São o Estado e o município que têm de cuidar disso aí”.

A crise escancarou a falta de uma governança nacional para a Educação. “Imagina passarmos por essa pandemia sem um Sistema Único de Saúde (SUS)”, ponderou recentemente a presidente executiva do instituto Todos Pela Educação, Priscila Cruz. “Poderíamos enfrentar essa crise na Educação de uma maneira muito melhor se houvesse um Sistema Nacional de Educação.”

Não só para mitigar as disparidades imediatas ampliadas pela pandemia, mas para adaptar o sistema de ensino a um futuro precocemente imposto por ela, uma das prioridades é universalizar o acesso à internet para as famílias dos alunos. Ainda que seja mais difícil universalizar dispositivos digitais, no mínimo os telefones celulares, cada vez mais presentes nos lares de baixa renda, podem servir de canal para a transmissão de conteúdos. Nas próprias escolas, um estudo recente da OCDE mostra que uma conectividade ampla, aliada a boas plataformas digitais, é fator imensamente mais relevante para o desempenho dos alunos do que a proporção de computadores.

De resto, é preciso qualificar os professores. O mesmo levantamento da OCDE aponta que as escolas que têm o cuidado de preparar programas específicos de utilização de dispositivos digitais têm melhor desempenho. No Brasil, uma pesquisa do Instituto Península apontou que 83% dos professores se sentem nada ou pouco preparados para o ensino remoto.

Com a aprovação do novo Fundeb o problema do financiamento da educação foi em grande parte solucionado. Mas isso será de pouca serventia sem uma boa engenharia de alocação e governança. A pandemia expôs dramaticamente a necessidade de um programa nacional para a educação similar ao que foi, há 30 anos, o SUS para a saúde. 

Supremo precisa preservar solvência e futuro do Rio – Opinião | O Globo

Se a Corte redistribuir os royalties do petróleo pela Federação, contas do estado entrarão em colapso

Foi longo o esvaziamento da cidade do Rio com a mudança da capital federal para Brasília. Agora, a solvência do estado está ameaçada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento marcado para 3 de novembro. Se a Corte mantiver a lei aprovada pelo Congresso no final de 2012, que retira parte dos royalties dos estados produtores de petróleo para redistribuí-la pelo resto da Federação, as finanças do Rio entrarão em colapso.

Fragilizado, dependente de um programa de recuperação fiscal que mal consegue cumprir, maior produtor de óleo e gás do país, o Rio há tempos virou um problema nacional, por tudo o que representa para o Brasil. Os efeitos da lei de 2012 foram suspensos no ano seguinte, por uma liminar concedida pela ministra Cármen Lúcia a pedido do estado. A decisão do STF sobre essa liminar, marcada para dia 3, afetará também Espírito Santo e São Paulo.

As cifras em jogo são preocupantes. Pelos cálculos do economista Mauro Osório, estudioso da economia fluminense, se o STF referendar a lei, o estado perderá R$ 57 bilhões até 2025. Ficará inviável. Máquina e serviços públicos entrarão em colapso definitivo. Basta considerar que o Orçamento deste ano, mesmo mantida a previsão da receita integral dos royalties, já acusa um déficit de R$ 20 bilhões.

A observação do que aconteceu com o Rio desde a década de 70 revela um caminho sem volta aparente. O estado perde relevância por ter uma economia que cresce pouco, portanto uma base estreita de arrecadação de impostos. Não é muito industrializado, nem tem agropecuária de peso. A produção de sua principal riqueza, petróleo e gás, não é taxada por ICMS no estado, pois os combustíveis recolhem o imposto no estado onde são consumidos. Em virtude disso tudo, o Rio é apenas o 17º estado do país em receita corrente líquida per capita. Só tem a 13ª arrecadação de ICMS, o mais importante imposto para os governadores.

Mesmo assim, de acordo com dados da assessoria fiscal da Alerj, chefiada por Mauro Osório, contribuiu em 2019 com 16,7% das receitas federais. Em troca, a União transferiu ao Rio apenas 9,6% do total dos recursos que redistribuiu pela Federação. Não é muito mais que os 8,2% que destinou à Bahia, responsável por apenas 1,8% da arrecadação federal. Trata-se, no mínimo, de uma injustiça federativa.

O longo ciclo de esvaziamento carioca e fluminense deixa marcas. Uma delas a taxa de desemprego no estado, hoje equivalente à do Nordeste. No segundo trimestre, de acordo com o IBGE, ela foi de 16,4% no Rio ante 16,1% no Nordeste. De janeiro de 2017 a agosto último, enquanto o emprego com carteira assinada no país cresceu 1,3%, no Rio caiu 9,5%. O estado perdeu 324.770 empregos formais.

É esse o contexto de um julgamento em que devem ser levados em conta todos os aspectos, não só os jurídicos. Os motivos expostos são suficientes para justificar a retirada da liminar da pauta. Seria o ideal também para que voltasse a ser debatida a proposta de acordo feita pelo Espírito Santo, com potencial para atender a todos os estados.

Ocupação em áreas de risco é pauta prioritária para futuros prefeitos – Opinião O Globo

Eventos extremos — tempestades, incêndios ou inundações — estão mais frequentes e intensos, revela estudo

Candidatos a prefeito nos 5.570 municípios brasileiros deveriam olhar com atenção o relatório da Organização Meteorológica Mundial, feito em conjunto com outras 16 instituições, mostrando que os eventos extremos quintuplicaram nos últimos 50 anos. Em meio século, foram registrados 11 mil desastres naturais — tempestades, inundações, incêndios florestais etc.—, que provocaram a morte de dois milhões de pessoas e prejuízos de US$ 3,6 trilhões.

A conclusão de que esses fenômenos ficaram mais frequentes, intensos e letais paira como uma gigantesca nuvem negra sobre boa parte das metrópoles do país, especialmente diante da situação indigente de moradia de um contingente expressivo da população. Uma pesquisa do IBGE divulgada em 2018 mostra que 8,27 milhões de brasileiros vivem em 2,5 milhões de domicílios situados em áreas de risco. Concentram o maior número desses moradores, as cidades de Salvador (1,2 milhão), São Paulo (674 mil) e Rio (445 mil). Em Salvador, 45,5% residem em regiões suscetíveis a desastres como deslizamentos ou inundações.

Como cabe aos municípios a ordenação do uso do solo, os futuros prefeitos terão de enfrentar o problema. Evidentemente, ele não surgiu agora. É resultado de décadas de negligência do poder público. Por incúria ou populismo, sucessivos prefeitos têm fechado os olhos para a ocupação irregular de encostas e margens de rios. Imaginam oferecer opção de moradia a famílias pobres. Engano. Oferecem a borda do abismo como política habitacional.

O último verão corrobora o relatório da Organização Meteorológica Mundial. As três maiores cidades do Sudeste foram duramente castigadas por tempestades. Em janeiro, Belo Horizonte registrou os maiores volumes de chuva em 110 anos. São Paulo parou em 10 de fevereiro pela tempestade mais severa em quase quatro décadas. No Rio, o temporal de 1º de março matou quatro pessoas e causou estragos cidade adentro. Também em março, na Baixada Santista, onde em 24 horas choveu o esperado para o mês inteiro, deslizamentos de encostas deixaram 45 mortos e centenas de desabrigados.

Tão previsíveis como as tempestades de verão, políticos costumam invocar volumes recordes de chuva para justificar a falta de ação, tanto na prevenção quanto no combate aos efeitos das enxurradas. É claro que não se resolverá de uma hora para outra um problema crônico, mas é preciso ter pelo menos um plano para remover populações das áreas propensas a desastres e dar-lhes condições dignas de moradia. Trata-se de preservar vidas. Prefeitos, atuais e futuros, devem ter em mente que os eventos extremos serão cada vez mais comuns. De nada adiantará a velha cantilena de culpar São Pedro.

Urgente e para todos – Opinião | Folha de S. Paulo

Ante pressão de Bolsonaro, Anvisa precisa dar sinais de não procrastinar vacina

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já tem de se ocupar de decisões relativas à compra de meios para a fabricação de um imunizante aqui. Estima-se que, em breve, deva examinar a segurança e a eficácia do produto.

De início, tais procedimentos dizem respeito à Coronavac, fabricada pela empresa chinesa Sinovac e encomendada pelo governo paulista. Como é bem e lamentavelmente sabido, tal processo tornou-se objeto de disputas entre Bolsonaro e o governador João Doria (PSDB-SP), prováveis adversários nas eleições de 2022.

O presidente faz campanha irracional contra a adoção da vacina e a obrigatoriedade da imunização—e o instituto estadual Butantan, responsável pela fabricação no país, diz que a Anvisa retarda a aprovação da importação de insumos.

Desde que sua indicação ao cargo de diretor-presidente da agência foi confirmada pelo Senado, nesta semana, Antonio Barra Torres tem dado declarações enfáticas sobre a independência do órgão e o caráter técnico de suas decisões.

Em entrevista à Folha, chegou a dizer que o ato de impedir ou de procrastinar a autorização para um produto que salve vidas é objeto, “em algum lugar”, do Código Penal —talvez se referisse ao artigo 319, que tipifica a prevaricação.

A despeito das afirmações corretas, é inevitável recordar que o histórico de Barra Torres não deixa de causar alguma preocupação.

Ele assumiu em julho de 2019 o cargo de diretor da Anvisa. Em março deste ano, na condição de diretor-presidente substituto e já durante a epidemia, acompanhou Bolsonaro em uma aglomeração de manifestantes. Foi conselheiro do presidente, que se opôs a medidas óbvias de contenção da epidemia.

Diretores de agências reguladoras não podem ser demitidos pelo presidente da República. Se assim o quiser, Barra Torres terá cinco anos à frente da Anvisa. Está limitado apenas pela lei e pela consciência do seu dever com o público.

A agência que preside tem amplos poderes e responsabilidades. Não lhe cabe postergar nem mesmo apressar decisões, salvo em casos previstos na lei sobre a excepcionalidade da pandemia.

As instituições, felizmente, dão sinais de que não se acomodarão ante mais um comportamento irresponsável do chefe de Estado. A pronta adoção pelo SUS de uma vacina —após verificação de eficácia e risco— e sua aplicação, se necessário, em caráter obrigatório são passos essenciais para a superação da calamidade sanitária e social.

O papa e os gays – Opinião | Folha de S. Paulo

Sem mudar a doutrina, declarações de Francisco aproximam a igreja da realidade

Desde que ascendeu ao posto de líder dos católicos, em 2013, o papa Francisco vem se notabilizando por introduzir pontos de vista mais avançados em temas que são tabus para a igreja, como o aborto ou o divórcio —embora, na prática, pouco ou nada tenha sido alterado na doutrina oficial da instituição.

Esse é o caso da recente defesa feita pelo pontífice da união homoafetiva. Mostrando-se muito mais aberto e afinado com a modernidade que seus predecessores, Francisco declarou, num documentário lançado há pouco, que “pessoas homossexuais têm o direito de estar em uma família” e defendeu uma legislação de união civil.

Trata-se de posição semelhante à expressada na época em que era cardeal em Buenos Aires, quando defendeu a aprovação de meios de proteção legal para casais do mesmo sexo —ainda que tenha se oposto a equiparar essa união ao casamento entre homem e mulher.

Já como papa, deu declarações favoráveis a homossexuais. “Quem sou eu para julgá-los?”, questionou.

As novas manifestações, as mais incisivas já feitas por um pontífice, têm decerto o potencial de influenciar os debates sobre o status legal de casais do mesmo sexo ao redor do mundo, além de conter a oposição de bispos e outras lideranças a essas mudanças.

Não é algo cuja importância deva ser desprezada. Hoje, apenas 28 nações permitem a união homoafetiva, quase todas nas Américas, incluindo o Brasil, e na Europa. As relações homossexuais são criminalizadas em 70 países, e em 6 deles a punição é a pena de morte.

Apesar da lufada de ar fresco, as palavras do papa em nada alteram a doutrina. Embora os ensinamentos católicos não considerem um pecado ser gay, estabelecem que atos homossexuais são “intrinsicamente desordenados” e, por extensão, a orientação é vista como “objetivamente desordenada”.

É pouco realista esperar mudanças da água para o vinho numa instituição tradicional e conservadora como a Santa Sé. Ainda mais num tema que suscita oposição cerrada de muitas de suas lideranças. O antecessor de Francisco, Bento 16, ainda vivo, chegou a comparar o casamento entre pessoas do mesmo sexo ao “anticristo”.

São visíveis, contudo, as inclinações do papa a promover uma necessária atualização da moral familiar católica, aproximando-a da realidade vivida pelos fiéis.

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