terça-feira, 27 de outubro de 2020

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Plebiscito para uma Constituinte é ideia estapafúrdia – Opinião | O Globo

Nem Chile nem Brasil podem, a pretexto de consertar o que está errado, jogar fora o que fizeram certo

Não tem cabimento a sugestão estapafúrdia do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), de que o Brasil deveria seguir o exemplo do Chile e convocar um plebiscito para estabelecer uma Constituinte que corrija as distorções da Carta de 1988. Como afirmou o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso à rádio CBN, trata-se da “opinião de alguém que não sabe o que é Constituição, não sabe o que é política, não sabe o que é governabilidade”.

As melhores constituições são as que respeitam a estabilidade das regras em vez de tentar reinventá-las. É verdade que a brasileira é uma das mais longas do mundo. Também é verdade que garante mais direitos do que impõe deveres (quase o quádruplo, segundo um cálculo). Mas nada disso justifica reescrevê-la. Seria, diz Velloso, “um retrocesso em termos de direitos fundamentais”.

Ao contrário do Chile, regido por uma Constituição do tempo da ditadura de Pinochet, o Brasil passou por uma Constituinte democrática, que nos legou a Carta de 1988. Já na época, as mentes argutas chamavam a atenção para o risco da “fúria legiferante” que acomete as assembleias encarregadas de redigir novas constituições. Nas palavras memoráveis de Roberto Campos, deputado constituinte em 1987, “cada parlamentar sente uma tentação insopitável de inscrever no texto constituinte sua utopia particular”.

O risco de escrever hoje uma Constituição do zero é idêntico. Abre-se a porteira para toda sorte de disparate. O resultado jamais corresponde à utopia de constituintes, juristas ou de quem quer que seja. Se há defeitos no texto constitucional, as regras vigentes permitem corrigi-los. Emendas constitucionais são o caminho certo para as reformas que, como quer Barros, imponham deveres — sem descuidar dos direitos.

No Chile, o risco dos delírios também preocupa. Desde a redemocratização, o país tem sido um exemplo de avanço econômico consistente num continente marcado por caudilhismo, populismo e demagogia. A Constituinte porá em risco conquistas consolidadas. Nem a reforma da educação superior nem a da Previdência, as duas principais demandas dos protestos chilenos, exigiriam uma nova Constituinte.

Encontrarão os chilenos um ponto de equilíbrio ou apenas estabelecerão um aumento impagável da carga tributária, com o corolário inevitável da paralisia fiscal que imobiliza Brasil, Argentina e tantos outros países da região? A mais bem-sucedida experiência econômica da América Latina está ameaçada pelo resultado do plebiscito. Não se imagine que a situação por aqui seria essencialmente melhor. Nem o Chile nem o Brasil podem, a pretexto de consertar o que está errado, jogar fora o que fizeram de certo.

Novo Chile – Opinião | Folha de S. Paulo

País refará Constituição por justa demanda popular; que não ceda ao populismo

Consequência mais relevante dos colossais protestos populares que há um ano tomaram o Chile, a votação realizada no domingo (25), ao decidir pela elaboração de uma nova Constituição, marca uma ruptura histórica no país sul-americano de melhor desempenho econômico nas últimas quatro décadas.

Por quase 80% dos votos, os chilenos aprovaram a substituição da Carta engendrada em 1980, durante o regime do ditador Augusto Pinochet —que durou de 1973 a 1990 e foi marcado por torturas, mortes, desaparecimentos e violações sistemáticas de direitos humanos.

Os eleitores também decidiram que o novo documento será redigido por uma Assembleia Constituinte sem a participação dos atuais legisladores. Esta deverá ser sufragada em abril do ano que vem, com metade das vagas ocupadas por mulheres e metade por homens.

A orientação liberal da política econômica chilena desde o período autoritária proporcionou as maiores taxas de crescimento do Produto Interno Bruto do continente. Esse sucesso, entretanto, não impediu insatisfações da sociedade, mais agudas recentemente.

Segundo dados do Fundo Monetário Internacional, a renda per capita do país, ajustada pelo poder de compra da moeda local, elevou-se em 162% desde 1980 e chega a US$ 22,2 mil. Em comparação, a brasileira, de US$ 13,8 mil, subiu apenas 21% no mesmo período.

Para um país de relativa prosperidade, entretanto, o Chile oferece serviços públicos modestos a sua população. Pela metodologia do FMI, seu gasto público equivale a 24% do PIB; no Brasil, que de longe ostenta a maior despesa entre emergentes, são 48% (ou 41%, se descontados juros da dívida).

Reside justamente nesse ponto, o da maior participação do Estado, o fulcro das demandas expressas pelos manifestantes.

Embora tenha recebido diversas emendas, a Constituição chilena distingue-se pelo estímulo à atuação de entes privados nas áreas de educação e saúde, bem como pelos parcos mecanismos de proteção dos trabalhadores.

O mesmo se verifica no sistema previdenciário, talvez o principal ponto de insatisfação social. O Chile adota um modelo de capitalização individual, com pouca ou nenhuma participação estatal.
Como resultado, os segurados recebem, em média, de 30% a 40% do último salário na ativa, cifra que gira em torno de US$ 400 (R$ 2.247), abaixo do salário mínimo chileno.

Consagrada a decisão por um novo contrato social, começa agora uma longa jornada, que dificilmente deixará de ser objeto de tensões e disputas. O processo constituinte ocorrerá entre meados de 2021 e 2022 num ambiente de alta polarização política e ansiedade popular.

Que esse momento crucial da história chilena seja conduzido com serenidade e equilíbrio —e que o previsível afã de atender às demandas represadas nas últimas décadas não recaia em tentações populistas e demagógicas tão frequentes na tradição latino-americana.

Uma Constituição para novos tempos – Opinião | O Estado de S. Paulo

Nova Constituição do Chile selará o fim de um sombrio capítulo da história do país.

No domingo passado, os chilenos manifestaram de forma inequívoca o desejo de repactuar a organização do Estado e sua relação com a sociedade. Em plebiscito que registrou alta participação popular, quase 80% dos cidadãos votaram a favor do “Apruebo”, ou seja, pela elaboração de uma nova Constituição que substitua a anacrônica Carta Política que vigora no Chile há 40 anos, marco constitucional da ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990).

O anseio da sociedade chilena por uma Constituição que traduza os novos tempos ficou patente durante as grandes manifestações que abalaram o Chile há pouco mais de um ano. A convocação do plebiscito – previsto inicialmente para abril, mas adiado em função dos riscos impostos pela pandemia – foi uma das formas que o presidente Sebastián Piñera encontrou para arrefecer os ânimos e se sustentar no poder até o final de seu mandato, em dezembro do ano que vem, e, quem sabe, fazer seu sucessor.

Ao votar a favor de uma Constituição que seja fruto de um novo pacto social, a sociedade chilena busca enterrar de vez um dos últimos resquícios de um sombrio capítulo da história recente de seu país. Em outro plebiscito, realizado em 1988, os chilenos já haviam decidido pelo fim da ditadura de Augusto Pinochet, mas foram necessários pouco mais de 30 anos para que fosse dado o passo seguinte, a consagração do Estado Democrático em um texto constitucional.

Também por folgada maioria (79%), os chilenos decidiram que a Constituição que passará a vigorar a partir do ano que vem advirá de uma Assembleia Constituinte exclusiva, e não de uma convenção mista formada metade por constituintes eleitos e metade por parlamentares que já exercem mandato. “Adeus transição, adeus ditadura, adeus Constituição escrita por pessoas fechadas em uma sala”, disse ao Estado a enfermeira Jéssica Barría. O sentimento de júbilo marcou as celebrações pelo resultado das urnas em todo o país.

A Assembleia Constituinte do Chile será a primeira em que haverá paridade de gêneros – 50% homens, 50% mulheres. Não há precedentes de divisão assim na história parlamentar. Em março, o Congresso chileno aprovou uma lei que garante a igualdade de representação entre homens e mulheres na redação do novo texto constitucional caso o “Apruebo” saísse vitorioso do plebiscito, como, de fato, ocorreu. A ação do Poder Legislativo, antes da consulta popular, já foi uma resposta institucional às demandas gritadas nas ruas. As desigualdades sociais e econômicas e a disparidade de tratamento por gênero no Chile foram dois dos temas mais presentes na pauta de reivindicações da sociedade durante as manifestações entre outubro de 2019 e março deste ano.

A eleição dos constituintes, próximo passo desse movimento de renovação política, está prevista para o dia 11 de abril de 2021. Eles terão entre nove meses e um ano para redigir a nova Constituição. Ao final dos trabalhos, um novo plebiscito será realizado para que os chilenos decidam se aprovam ou não o novo texto constitucional. “Até agora, a Constituição tem nos dividido. A partir de hoje (domingo), todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja um grande marco de unidade, estabilidade e futuro”, declarou o presidente Sebastián Piñera assim que foi confirmada a vitória do “Apruebo”.

É este o espírito de uma Constituição, o documento que estabelece os limites da atuação do Estado e ao qual todos os cidadãos estão igualmente submetidos em nome do bem comum. A redação da nova Carta já começará com a escolha dos constituintes. Os chilenos terão a oportunidade de escolher quais os direitos e quais os deveres pretendem privilegiar neste novo pacto.

A nova Constituição será boa ou ruim a depender dos olhos de quem a leia no futuro. Alguns interesses podem ser contemplados no novo texto, outros não. Mas é inegável que se está diante de um avanço quando este tipo de definição advém da vontade popular.

Arrecadação melhora, mas seu desempenho ainda é incerto – Opinião | Valor Econômico

Nem todas as atividades vêm mostrando o mesmo ritmo de reação

A melhora da arrecadação deu um alento ao governo. Depois de ter mergulhado durante seis meses seguidos, ao longo da fase mais aguda do impacto da pandemia do novo coronavírus na atividade econômica, a arrecadação reagiu em agosto e confirmou a trajetória positiva no mês passado, refletindo a reabertura da economia e a força do auxílio emergencial no varejo. Há muitas dúvidas ainda sobre a consistência da recuperação da arrecadação, que dependerá diretamente do ritmo da retomada. De toda forma, dificilmente toda a receita destruída será recuperada. O próprio governo estima a perda de quase R$ 198 bilhões, o que equivale a um mês e meio do que esperava recolher em tributos o ano todo, como constava na Lei Orçamentária Anual (LOA).

Agosto trouxe o primeiro sinal positivo na arrecadação federal desde janeiro. De abril a julho, as quedas na comparação com o mesmo período de 2019 foram todas de dois dígitos, chegando a 32,92% em maio. A intensidade do recuo foi diminuindo até mostrar crescimento real de 1,33% em agosto, na comparação com o mesmo mês do ano passado, e atingir R$ 124,5 bilhões. O resultado de agosto é o melhor para o mês desde 2014. Mas, no ano, somou R$ 906,5 bilhões e é o pior desde 2003.

A arrecadação melhorou em agosto na esteira da flexibilização do isolamento social e com o recolhimento de tributos cujos pagamentos haviam sido adiados no auge da pandemia, com as medidas de apoio à economia. O governo adiou o PIS, Pasep, Cofins, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), Simples Nacional, tributação do Microempreendedor Individual (MEI), contribuição previdenciária de empresas e empregadores de trabalhadores domésticos. Os pagamentos devidos em abril, maio e junho foram transferidos para agosto, outubro e novembro. A expectativa é que seriam pagos em agosto cerca de R$ 23,2 bilhões em tributos diferidos, mas a conta ficou em R$ 17,3 bilhões, 25,52% a menos.

Segundo a Receita Federal, não houve calote. A diferença foi recolhida por meio de compensações tributárias, quando as empresas usam créditos originários de pagamentos indevidos ou feitos a mais no passado para quitar tributos no presente. As compensações tributárias somaram R$ 18,1 bilhões em agosto, o dobro do registrado um ano antes, e estão, em sua maior parte, relacionadas à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de excluir o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da base de cálculo do PIS/Cofins. Empresas que haviam recolhido o pagamento enquanto a discussão era travada na Justiça podem usar os valores recolhidos a mais para compensar compromissos novos.

Setembro marcou a melhor arrecadação para o mês em seis anos. A arrecadação somou R$ 119,8 bilhões, com aumento real de 1,97% em relação ao mesmo mês do ano anterior. No acumulado do ano, a arrecadação chegou a R$ 1,026 trilhão, patamar mais baixo para o período desde 2010.

Desta vez não houve recolhimento de impostos diferidos, o que só volta a ocorrer agora em outubro. A arrecadação foi impulsionada pelas atividades econômicas, especialmente no varejo e aumento das importações. Também ajudaram nos resultados alguns pagamentos extraordinários, como o recolhimento de Imposto de Renda Pessoa Jurídica e CSLL, que somaram R$ 2,5 bilhões, com aumento de 25,19% em relação a setembro do ano anterior.

O governo deve, porém, frear seu otimismo. Em primeiro lugar, nem todas as atividades vêm mostrando o mesmo ritmo de reação. Os serviços vêm ficando para trás, por exemplo. Outro motivo é a possível prorrogação da redução a zero do IOF sobre o crédito. O benefício estava previsto para terminar no fim do ano, mas o Valor apurou que o governo estuda sua extensão. Essa medida vem reduzindo em R$ 2,4 bilhões por mês a arrecadação federal.

A expectativa de recuperação de R$ 64,5 bilhões com a arrecadação de impostos prorrogados deve ser vista com cautela. O valor pode ser menor, reconheceu a própria Receita Federal, pois foi estimado com base em uma queda da atividade econômica maior do que a efetivamente registrada. Além disso, muitas empresas vêm usando créditos tributários para pagar seus compromissos. As compensações tributárias já reduziram a arrecadação em R$ 108,3 bilhões neste ano, valor que equivale a 11% de toda a arrecadação administrada pela Receita até setembro.

Não é o arroz, presidente – Opinião | O Estado de S. Paulo

Executivo precisa informar com urgência – e de forma crível – como pretende manter a recuperação e arrumar suas contas a partir de janeiro.

Com a grosseria habitual, o presidente Jair Bolsonaro mandou um cidadão incomodado com a alta de preços comprar arroz na Venezuela. Também de forma habitual, a reação tosca serviu para afastar um assunto desagradável e complicado. Não serviu, no entanto, para atenuar o desajuste dos preços nem para afastar uma das principais ameaças à continuação da retomada econômica. A inflação diminui o poder de compra das famílias, já afetado pela redução do auxílio emergencial e pelo desemprego recorde. O custo do arroz, tema do incidente na Feira Permanente do Cruzeiro, no Distrito Federal, é apenas um detalhe bem visível do problema diante do Executivo. Será o presidente capaz de perceber o desafio real?

Bem comportados até há pouco tempo, os preços no varejo voltaram a assombrar as famílias. A prévia da inflação, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), bateu em 0,94%, a maior variação para um mês de outubro desde 1995. A alta acumulada no ano foi de 2,31%. Em 12 meses o IPCA-15 subiu 3,52%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sem correção da renda familiar, preços mais altos acabam resultando em menor poder de consumo.

A maior pressão, como no mês anterior, veio de alimentos e bebidas. Esse componente ficou 2,24% mais caro e, por seu peso no orçamento familiar, contribuiu com 0,45 ponto para o aumento geral de 0,94%. Carnes, óleo de soja, arroz, tomate e leite longa vida foram os produtos com maiores altas de preços, na parte alimentar.

Famílias de baixa renda são as mais prejudicadas pelo encarecimento da comida e de outros itens essenciais, como o gás de cozinha. Em setembro, houve aceleração da alta de preços para famílias de todas as faixas de renda e as mais pobres foram as mais afetadas.

A inflação por faixa de renda mensal é acompanhada regularmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As famílias são agrupadas em seis faixas. Em setembro, as taxas de inflação dos diferentes estratos variaram amplamente, desde 0,29% para a faixa de renda muito alta até 0,98% para a de renda muito baixa.

Cerca de três quartos da inflação dos muito pobres, em setembro, são explicáveis pela alta de preços da comida. Para as famílias de renda média, a alimentação mais cara produziu 0,39 ponto porcentual da inflação de 0,56%. Para os consumidores do extremo superior o item alimentação contribuiu com 0,20 ponto do total de 0,29%. A diferença, quando se observa o período de um ano, é muito grande. Nos 12 meses até setembro de 2020 a inflação da classe de renda muito baixa atingiu 4,3%, enquanto a das pessoas de renda muito alta ficou em 1,8%.

As famílias pobres foram, proporcionalmente, as mais beneficiadas pelo auxílio emergencial, diminuído a partir de setembro e com extinção prevista para o fim de ano. Essas famílias também estão, normalmente, entre as mais afetadas pelas más condições do mercado de trabalho.

No fim de setembro estavam desocupados 14 milhões de trabalhadores, 14,4% da força de trabalho, mas o número de pessoas em condições precárias (desempregadas, desalentadas e outras) passava de 30 milhões.

Empregos devem surgir neste fim de ano, mas a melhora é sazonal. Não se sabe se as contratações igualarão as de 2019 nem se a mão de obra retida pelas empresas na virada do ano, quando a maior parte é dispensada, será maior ou menor que a de períodos anteriores.

Como nem o Orçamento está definido, é difícil qualquer previsão para 2021. Além disso, o Executivo nem sequer esboçou uma estratégia para sustentação da retomada. Em setembro, o Índice de Confiança do Comércio, medido pela Fundação Getúlio Vargas, diminuiu de 99,6 para 95,8 pontos, depois de cinco altas consecutivas. O Executivo precisa informar com urgência – e de forma crível – como pretende manter a recuperação e arrumar suas contas a partir de janeiro. Sem um mínimo de segurança, será difícil planejar os negócios, o dólar continuará alto e a inflação seguirá pressionada. O problema é bem mais grave que o preço atual do arroz.

 

Espírito monárquico – Opinião | O Estado de S. Paulo

Mais uma vez, o presidente trata o aparato do Estado como extensão da sua casa.

O presidente Jair Bolsonaro participou de uma reunião com duas advogadas de seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, para discutir supostas irregularidades em relatórios produzidos por órgãos federais de fiscalização a respeito do parlamentar, enrolado no escândalo das rachadinhas. Estiveram no encontro o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem.

Mais uma vez, o presidente Bolsonaro trata a Presidência da República e o aparato institucional do Estado como uma extensão de sua casa, usando-os como instrumentos para resolver problemas particulares. 

Nunca é demais lembrar: o artigo 37 da Constituição, que o sr. Bolsonaro jurou respeitar e fazer respeitar, diz que o presidente da República, bem como qualquer outro integrante da administração pública, deve se pautar pelo princípio da impessoalidade. Isto é, nenhum funcionário público pode usar o cargo para fins privados – especialmente o presidente da República, por razões óbvias.

O mesmo artigo constitucional diz que outro princípio fundamental da administração pública é o da publicidade, exigência igualmente ignorada pelo presidente Bolsonaro. A reunião com as advogadas do filho Flávio Bolsonaro, realizada no dia 25 de agosto, não constava da agenda oficial nem do presidente nem de seu ministro do GSI. 

Não fosse o trabalho da imprensa, portanto, os cidadãos brasileiros seriam privados da informação segundo a qual o presidente da República se reuniu de maneira inapropriada com as advogadas de seu filho e envolveu os chefes do GSI e da Abin, para tratar de assuntos de exclusivo interesse de sua família.

Assim, pouco importa do que foram se queixar as advogadas de Flávio Bolsonaro ao pai deste – que vem a ser o chefe formal dos órgãos federais cujo trabalho é verificar se os cidadãos, como o citado senador, não estão burlando o Fisco. O que interessa é que o presidente as recebeu em sigilo e, segundo o que se sabe, usou seu poder para verificar a possibilidade de atender ao pleito da defesa do filho, envolvendo inclusive o serviço de inteligência federal, sabe-se lá com que propósitos obscuros.

Não é de hoje que o presidente Bolsonaro encara suas questões particulares como se fossem de Estado. No caso mais rumoroso, corre no Supremo Tribunal Federal um inquérito para apurar se Bolsonaro interferiu politicamente na Polícia Federal para favorecer sua encrencada família, segundo acusou o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.

Também não é de hoje que o senador Flávio Bolsonaro não se defende objetivamente das acusações que sofre, limitando-se a lançar mão de chicanas e manobras protelatórias que tão bem caracterizaram a defesa de muitos dos réus do mensalão e do petrolão, escândalos de triste memória.

Primeiro, o senador moveu montanhas para manter o foro por prerrogativa de função, que não cabia nesse caso. Depois, alegou que o Ministério Público não podia fazer acusações com base em dados oriundos de suposta quebra de sigilo bancário. Agora, sua defesa pretende colocar sob suspeita a produção de relatórios de órgãos de fiscalização que podem comprometê-lo.

Em seu esforço para procrastinar o acerto de contas com a Justiça, o senador Flávio Bolsonaro parece de fato contar com a prestimosa ajuda do pai, que nunca escondeu que seus filhos precedem o interesse público. “Pretendo beneficiar filho meu sim”, já disse o presidente, em outra ocasião, sobre sua disposição de usar o cargo para dar uma forcinha à prole. 

E o mais espantoso é que ninguém no entorno de Bolsonaro expressa desconforto com isso. Ao contrário, parece considerar realmente que o Estado que Bolsonaro chefia temporariamente deve estar a serviço dos integrantes da “família presidencial”, expressão que não por acaso consta tanto da nota do ministro Augusto Heleno como da nota do senador a respeito da reunião sobre as supostas irregularidades na Receita – e que é muito mais apropriada a uma monarquia do que a uma república.

Preservar a Fapesp – Opinião | Folha de S. Paulo

Instituição de pesquisa deve manter fluxo de verbas ameaçado por texto de Doria

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) ocupa posição invejável entre órgãos de fomento no Brasil, com financiamento garantido por dotação constitucional de 1% da arrecadação do ICMS. Assim a produção acadêmica paulista se tornou a maior e melhor do país.

Verdade que os tempos são difíceis para qualquer governo, com a crise econômica provocada pela pandemia e pelos sinais erráticos do Planalto. Receitas sofreram o baque da queda da atividade, e gastos seguem pressionados —ainda que em menor grau após a reforma— pelas aposentadorias.

Ajustes são imperiosos, mas o administrador responsável não distribui cortes de modo linear. Pesquisas científicas são projetos de longa maturação, que podem consumir anos entre planejamento, coleta de dados, análise e publicação —daí a necessidade de assegurar fluxo contínuo de verbas, para não desperdiçar recursos.

A Fapesp, assim como as universidades estaduais paulistas (igualmente destacadas no panorama nacional de excelência), escapou por pouco do talhão ao ser excluída do projeto de lei 529 do governador João Doria (PSDB). A medida previa o sequestro pelo Tesouro estadual de sobras financeiras de autarquias ao final de cada exercício.

Agora, o projeto de Orçamento estadual para 2021 estipula a desvinculação de 30% das verbas previstas para a Fapesp. A previsão constitucional resultaria em R$ 1,52 bilhão, porém a medida permitiria um corte de R$ 455 milhões.

Por necessário que seja o objetivo de equilibrar receitas e despesas, a providência romperia uma prática bem-sucedida há décadas, pela qual se concedeu autonomia às instituições paulistas de pesquisa.

O modelo baseado em uma parcela fixa da receita pressupõe que as entidades vão gerir livremente os recursos, arcando —como já ocorreu— com consequências de más decisões administrativas. É imperativo também que possam planejar suas ações a partir de normas previsíveis, não ao sabor das preferências do governo de turno.

Espera-se, assim, que o Bandeirantes e a Assembleia Legislativa revejam tal propositura.

Constituição confere royalties do petróleo apenas aos produtores – Opinião | O Globo

O confisco da indenização por estados que não produzem infringe determinações expressas da Carta

O julgamento marcado para o início de dezembro no STF, para tratar da lei de 2012 que confisca parte dos royalties dos estados produtores de petróleo, pode trazer não apenas danos irreparáveis às finanças do Rio, mas também consequências gravíssimas à segurança jurídica e ao equilíbrio federativo no país. A lei desrespeita dispositivos constitucionais cristalinos.

Ao aprová-la, num confronto desigual no Legislativo entre estados produtores e não produtores, o Congresso atropelou o conceito de royalty: indenização a entes federativos que exploram recursos naturais e incorrem, em virtude dessa exploração, nalgum dano ou risco. Trata-se de compensação pelas implicações negativas trazidas pela exploração às populações dos estados e municípios produtores.

A Ação de Direta de Inconstitucionalidade impetrada pelo Rio de Janeiro, com base na qual a ministra Cármen Lúcia suspendeu em liminar de 2013 os efeitos da lei, está lastreada nos artigos 20 e 155 da Constituição. O primeiro assegura aos produtores “participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial, ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração”.

O segundo artigo estabelece que o ICMS sobre o petróleo será recolhido no estado onde é consumido, não produzido (caso de outros produtos). Royalties também servem, portanto, para compensar o desbalanceamento tributário. A lei aprovada em 2012, além de tudo, desconsidera essa realidade.

Ao aceitar a demanda do Rio, em benefício de outros entes federativos, a ministra destacou que o direito deles “decorre de sua condição territorial e dos ônus que têm de suportar ou empreender pela sua geografia e de assumir em sua geoeconomia, decorrentes daquela exploração. Daí a garantia constitucional de que participam do resultado ou compensam-se pela exploração de petróleo ou gás natural”.

As distorções criadas em municípios fluminenses pela primeira onda dos royalties, na exploração da Bacia de Campos, são pedagógicas. Favelização e aumento da violência foram alguns dos efeitos da atração de mão de obra.

A quebra da norma constitucional ameaça outras indenizações, como as destinadas a Minas Gerais pela exploração de minério de ferro, causa das tragédias de Mariana e Brumadinho, em que o estado precisou do amparo da União e de outros entes federativos. Tão insensato quanto subtrair de Minas os royalties da mineração é tirá-los dos estados produtores de petróleo.

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