domingo, 18 de outubro de 2020

Poesia | Fernando Pessoa - Afinal


 
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.  
  Sentir tudo de todas as maneiras.  
  Sentir tudo excessivamente,  
  Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas  
  E toda a realidade é um excesso, uma violência,  
  Uma alucinação extraordinariamente nítida  
  Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,  
  O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas  
  Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.  
  
  Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,  
  Quanto mais personalidade eu tiver,  
  Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,  
  Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,  
  Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,  
  Estiver, sentir, viver, for,  
  Mais possuirei a existência total do universo,  
  Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.  
  Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,  
  Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,  
  E fora d'ele há só Ele, e Tudo para ele é pouco.  
  
  Cada alma é uma escada para Deus,  
  Cada alma é um corredor-Universo para Deus,  
  Cada alma é um rio correndo por margens de Externo  
  Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.  
  
  Sursum corda!  Erguei as almas!  Toda a matéria é espírito,  
  
  Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos  
  Dados à grande sombra que ensopa o exterior em sonho  
  E funde em noite e mistério o universo excessivo!  
  Sursum corda!  Na noite acordo, o silêncio é grande,  
  As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam  
  
  Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos  
  Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.  
  Sursum corda!  Acordo na noite e sinto-me diverso.  
  Todo o Mundo com a sua forma visível do costume  
  Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,  
  
  Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.  

  Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço  
  Que embala a alma dispersa da humanidade sucessiva!  
  Mãe verde e florida todos os anos recente,  
  Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,  
  Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis  
  Num rito anterior a todas as significações,  
  Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!  
  Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,  
  Grande voz acordando em cataratas e mares,  
  Grande bacante ébria do movimento e da mudança,  
  Em cio de vegetação e florescência rompendo  
  Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso  
  A tua própria vontade transtornadora e eterna!  
  Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,  
  Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,  
  Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,  
  Que perturba as próprias estações e confunde  
  Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!  
  
  Sursum corda!  Reparo para ti e todo eu sou um hino!  
  Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima  
  Volteia serpenteando, ficando como um anel  
  Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,  
  Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.  
  Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente  
  Meu coração a ti aberto!  
  Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,  
  Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,  
  Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,  
  
  Sou um monte confuso de forças cheias de infinito  
  Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,  
  A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une  
  E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim  
  Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,  
  Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira  
  Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,  
  Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.  
  
  Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.  
  Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,  
  No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo  
  Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos  
  Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.  
  
  Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,  
  Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo  
  De chamas explosivas buscando Deus e queimando  
  A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,  
  A minha inteligência limitadora e gelada.  
  
  Sou uma grande máquina movida por grandes correias  
  De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,  
  O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,  
  E nunca parece chegar ao tambor donde parte ...  
  
  Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito  
  Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,  
  Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,  
  Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço  
  Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.  
  
  Dentro de mim estão presos e atados ao chao  
  Todos os movimentos que compõem o universo,  
  A fúria minuciosa e dos átomos,  
  A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,  
  A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,  
  
  A chuva com pedras atiradas de catapultas  
  De enormes exércitos de anões escondidos no céu.  
  
  Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio  
  De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.  
  Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,  
  Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,  
  Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,  
  Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,  
  Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,  
  Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,  
  Sobrevive-me em minha vida em todas as direções! 

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